22 maio, 2008

Atrás das cortinas no teatro do etanol

... minhas pesquisas em nível qualitativo na macrorregião de Ribeirão Preto apontam que a vida útil de um cortador de cana é inferior a 15 anos, nível abaixo dos negros em alguns períodos da escravidão.


Maria Aparecida de Moraes Silva

Nos últimos dias, os diversos meios de comunicação deram cobertura às viagens do presidente da República aos países europeus e aos Estados Unidos. Neste último, ao discursar na 62ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ele defendeu, mais uma vez, o argumento dos biocombustíveis como solução para os problemas climáticos do planeta.

Na mesma ocasião, segundo reportagem da Folha (Brasil, 26/9), o chanceler da República, Celso Amorim, rebateu a tese de que a produção de alimentos é afetada pelo crescimento da cultura canavieira para a produção do etanol, citando o exemplo do Estado de São Paulo.

Essa última afirmativa, no entanto, vai na contramão dos dados oficiais do Instituto de Economia Agrícola, que apontam para a diminuição das áreas de 32 produtos agrícolas, dentre eles: arroz (10%), feijão (13%), milho (11%), batata (14%), mandioca (3%), algodão (40%) e tomate (12%), sem contar a redução de mais de 1 milhão de bovinos e a queda da produção de leite no período 2006-2007.

Diante desses discursos, proponho-me a trazer ao palco do teatro do etanol os atores até então deixados atrás das cortinas: os trabalhadores rurais, os cortadores de cana dos canaviais paulistas. O que eles querem é só um "dedinho de prosa" com o presidente. Num diálogo imaginário, eles relatariam as "coisinhas simples" do cotidiano, do trabalho, da vida, enfim.

Na sua grande maioria, são migrantes provenientes dos Estados do Nordeste e do norte de Minas Gerais (em torno de 200 mil, segundo a Pastoral do Migrante). São homens, jovens entre 16 e 35 anos de idade.

Durante oito meses ao ano, permanecem nas cidades-dormitório em pensões (barracos) ou nos alojamentos encravados no meio dos canaviais. Divididos em turmas nos atuais 4,8 milhões de hectares dos canaviais paulistas, são invisíveis aos olhos da grande maioria da população, exceto pelos viajantes das estradas que os vêem enegrecidos pela fuligem da cana queimada, chegando, até mesmo, a ser confundidos com elas.

São submetidos a duro controle durante a jornada de trabalho. São obrigados a cortar em torno de dez toneladas de cana por dia. Caso contrário podem: perder o emprego no final do mês, ser suspensos, ficar de "gancho" por ordem dos feitores (sic) ou, ainda, ser submetidos à coação moral, chamados de "facão de borracha", "borrados", fracos, vagabundos.

A resposta a qualquer tipo de resistência ou greve é a dispensa. Durante o trabalho, são acometidos pela sudorese em virtude das altas temperaturas e do excessivo esforço, pois, para cada tonelada de cana, são obrigados a desferir mil golpes de facão. Muitos sofrem a "birola", as dores provocadas por câimbras.

Os salários pagos por produção (R$ 2,5 por tonelada) são insuficientes para lhes garantir alimentação adequada, pois, além dos gastos com aluguéis e transporte dos locais de origem até o interior de São Paulo, são obrigados a remeter parte do que recebem às famílias.

As conseqüências desse sistema de exploração-dominação são: - de 2004 a 2007, ocorreram 21 mortes, supostamente por excesso de esforço durante o trabalho, objeto de investigação do Ministério Público; - minhas pesquisas em nível qualitativo na macrorregião de Ribeirão Preto apontam que a vida útil de um cortador de cana é inferior a 15 anos, nível abaixo dos negros em alguns períodos da escravidão.

Constatei as seguintes situações de depredação da saúde: desgaste da coluna vertebral, tendinite nos braços e mãos em razão dos esforços repetitivos, doenças nas vias respiratórias causadas pela fuligem da cana, deformações nos pés em razão do uso dos "sapatões" e encurtamento das cordas vocais devido à postura curvada do pescoço durante o trabalho.

Além dessas constatações empíricas, as informações recentes do INSS para o conjunto do Estado de São Paulo, no período de 1999 a 2005, são: - o total de trabalhadores rurais acidentados por motivo típico nas atividades na cana-de-açúcar foi de 39.433; por motivo relacionado ao trajeto, o total correspondeu a 312 ocorrências; - quanto às conseqüências, os números totais para o período são: - assistência médica: 1.453 casos; - incapacidade inferior a 15 dias: 30.465 casos; - incapacidade superior a 15 dias: 8.747 casos; - incapacidade permanente: 408 casos; - óbitos: 72 casos.

Nesse momento, os atores saem do palco e voltam para trás das cortinas. O presidente, ouvinte, sabe que eles falaram a verdade. Sertanejo não mente: esse é o código do sertão.

Maria Aparecida de Moraes Silva, doutora em sociologia pela Universidade de Paris 1 (França), é professora livre-docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista). É autora de "A Luta pela Terra: Experiência e Memória", entre outras obras.

24 janeiro, 2008

Os melhores diálogos da Turma do Chaves e Chapolin:





*Dona Florinda: "Bem... quanto me disse que era mesmo?"
Chaves: "Vinte!"
Dona Florinda: "Ah!, mas agora há pouco tinha dito só quatorze!!"
Chaves: "Então por que pergunta?!"


*Ramón: "Olha... se tivesse Olimpíadas pra idiotas, você ganharia medalha de ouro!"
Chapolin: "É? E você nem tomaria parte nessa competição."
Ramón: "É claro que não!"
Chapolin: "É que nas Olimpíadas, eles não aceitam profissionais."


*Sr. Barriga: "Sempre que eu chego nesta vila, você me recebe com uma pancada... diga a verdade, Chaves... eu sou antipático?"
Chaves: "Só do calcanhar pra cima."

*Sr. Barriga: "Agora só falta você me chamar de gordo..."
Chaves: "Gordo. Mas ainda falta o Quico! Quicooooo, o Sr. Barriga quer que todos chamem ele de..."

*Sr. Barriga: "Quando eu posso chegar aqui sem ser recebido com uma pancada?!"
Chaves: "No domingo, quando eu tô na missa!"


*Dona Clotilde: "Eu não sou nenhuma velha, ouviu? Fique sabendo que eu acabo de passar dos 45..."
Quico: "Do segundo tempo!"


*Dona Florinda: "E você, fora daqui!!"
Chiquinha: "Tudo bem, já fui expulsa de casas melhores."


*Dona Florinda: "Rápido, Chaves! Pegue um balde!"
Chaves: "De qual cor?"
Dona Florinda: "Qualquer uma!!"
Chaves: "Serve um vermelho?"
Dona Florinda: "Sim!!"
Chaves: "Mas não tem vermelho!"


*Seu Madruga: "O Sr. Barriga me prometeu muito generosamente me doar uma camisa velha..."
Chiquinha: "Não importa! Podemos recortar e fazer uns três ou quatro lençóis!"


Chiquinha: "O Papai Noel é casado com a Mary, não sabia?"
Chaves: "Mary? Que Mary?"
Chiquinha: "Mary Christmas!"


*Seu Madruga: "O senhor veio aqui só para me lembrar que eu lhe devo 14 meses de aluguel, certo?"
Sr. Barriga: "Isso mesmo."
Seu Madruga: "Não se preocupe, eu não vou esquecer!"


*Chiquinha: "Quico vive dizendo que sou uma anãzinha!"
Chaves: "Ora, não liga pra isso... O Quico é um papagaio que só vive repetindo o que todo mundo diz!"
Chiquinha: "...!!!"
Chaves: "Olha, pra ele aprender, da próxima vez que ele te chamar de anão, pega ele e dá-lhe uma cabeçada no joelho!"
Chiquinha: "...!!!"
Chaves: "Sim, porque o que você tem de anã, eu tenho de tonto!"
Chiquinha: "Quer dizer que eu sou um micróbio?!?"


*Seu Madruga: "Isto é uma caliúnia, meu senhor!! Uma caliúnia!! O senhor sabe o que é uma caliúnia?!"
Prof. Girafales: "Não seria uma calúnia?"
Seu Madruga: "E não tente mudar de assunto!!!"


*Chaves: "O Homem-Invisível está na vila! Eu sei disso!"
Quico: "E como sabe?"
Chaves: "Porque eu não tô vendo ele!!!"


*Dona Florinda: "Mas, tesouro... quer dizer que você bebeu 14 copos?"
Quico: "Não, mamãe, os copos eu não bebi; só o suco!"


*Dona Florinda: "Você veio aqui para lhe tomar o tempo ou o quê?"
Chiquinha: "Eu vim 'o quê'."


*"Sabe como é, todo esse tipo de porcarias: papéis, lixo,.. Florinda..." (by seu madruga)

02 janeiro, 2008

O marxismo e a questão cultural

[Publicado originalmente em 1968 como prefácio à obra Literatura e Revolução, de Leon TROTSKY; reeditada em 2007 por Zahar Editores (4ª. ed.)].

Que atitude deve adotar a revolução diante da literatura e a arte? Poderá o proletariado, assumindo a posição de classe dominante na sociedade, criar a sua própria cultura, como o fez a burguesia?

Estes problemas, a que os fundadores do socialismo científico não dedicaram especial atenção, os bolcheviques tiveram de enfrentar, após a tomada do poder, em 7 de novembro de 1917[1]. O torvelinho da revolução envolveu, de uma forma ou de outra, os escritores, poetas e artistas. A torre de marfim desmoronou. A indiferença da arte pura pela participação política manifestou seu verdadeiro sentido de classe. Uma grande parte da intelligentsia não escondia o desprezo e extravasava seu ódio contra os vândalos, os usurpadores, o populacho, em suma, contra os bolcheviques, principalmente contra Lênin e Trotsky. As musas da burguesia e da nobreza, quando não se engajavam na guerra civil, ao lado dos brancos e da Entente, silenciavam, emudeciam, não suportavam as privações, a fome e o frio, a promiscuidade com a plebe. Escritores e poeta ou fugiam para o exterior ou se isolavam, com horror e alheios ao mundo que emergia, como estrangeiros dentro do seu país, os emigrados internos, segundo a expressão com que Trotsky os batizou.

Não lhes restava outro caminho senão buscar o passado. E quanto mais remoto, tanto melhor. Aldanov agarrava-se à Revolução Francesa de 1789. Boris Zaisev ressuscitava as figura do renascimento italiano. E Dmitri Merejkovsky retornava ao Egito dos faraós, à Babilônia e a Mesopotâmia. Outros, como Z. Gippius, L. Andreyev, M. Artsbachev e A Kuprin, simplesmente odiavam. A intelligentsia, comprometida, na sua maioria, com as classes derrubadas pela revolução, mergulhou o Poder Soviético num clima de hostilidade, e entre os anos de 1918 e 1919, a antiga literatura e a antiga arte ruíram com o regime social a que serviam como superestrutura ideológica.

Não se pode dizer, entretanto, que toda a intelectualidade passou para a contra-revolução. Valeri Briusov, Alexandre Blok, Serge Essenin, Maximo Gorki, Vladimir Maiakovsky, Serafimovitch e Natan Altman, entre outros, apoiaram o Governo Soviético. Novas escolas artísticas e literárias, como o futurismo, o imaginismo, o construtivismo, os Irmãos Serapion, os forjadores, floresceram no campo da revolução. Havia, naturalmente, certa ambivalência nas relações entre essas escolas e os dirigentes bolcheviques. Lênin olhava com desconfiança o futurismo. Ainda preferia Tolstói, Puschkin, Checov, Shakespeare, Shiller e Byron. Não porque repelisse as inovações, mas porque desejava uma arte acessível às massas e não apenas para deleite de meia dúzia de intelectuais. “Várias vezes tentei ler Maiakovsky e nunca pude ler mais que três versos: sempre durmo” – comentava.

Não aceitava, por outro lado, a tendência para a criação da cultura proletária, representada pelo Proletkult, que, sob a inspiração de A. Bogdanov e de Lebedev-Polianski, contava com o patrocínio do Comissariado da Instrução, dirigido por A. Lunatcharsky, e a simpatia de Bukharin. Interveio e exigiu que o Congresso do Proletkult, realizado em Moscou (1920), aprovasse uma resolução, por ele próprio redigida, condenando “com a maior energia, como inexata teoricamente e prejudicial na prática, toda tentativa de inventar uma cultura especial, própria”. E, quando o Pravda publicou um artigo em que Pletnev manifestava a sua intenção de estudar ciência proletária. Lênin repreendeu Bukharin por permitir a publicação daquele disparate e escreveu que “o autor não deve estudar ciência proletária, mas, simplesmente, estudar”.

Coube a Trotsky, cujas opiniões coincidiam, de modo geral, com as de Lênin, abordar mais profundamente esses problemas. Não pretendia escrever um livro e sim o prefácio para um volume de suas Obras, que as Edições do Estado lançariam. Era o verão de 1922, e ele, depois de recusar o posto de vice-presidente do Conselho de Comissários do Povo, que Lênin lhe oferecera, partiu de férias para o interior da Rússia. O prefácio cresceu tanto que se converteu num livro e Trotsky só pode terminá-lo no verão seguinte. Assim apareceu Literatura e Revolução. Trotsky não só criticava, do ponto de vista dialético, as principais tendências artísticas e literárias da Rússia pós – revolucionária, seus principais intérpretes, com Biely, Blok, Essenin, Maiakovsky e outros, como estudava, detidamente, a atitude que o Partido Comunista deveria adotar e a questão da cultura proletária.

O Partido Comunista, no seu entender, não deveria interferir nas controvérsias e nas disputas entre as diversas escolas, assumir a posição de um circulo literário, concorrendo com outros, mas salvaguardar os interesses históricos do proletariado, no seu conjunto. Como que prevendo a degenerescência do estalinismo, que, posteriormente, criou uma arte oficial, na verdade acadêmica e burocrática, sob o epíteto de realismo socialista, Trotsky proclamaria: a arte não constitui um terreno onde o Partido possa mandar. O Partido pode e deve conceder um crédito de confiança aos diversos grupos que procurem, sinceramente, aproximar-se da revolução, afim de ajudá-los na sua realização artística.

Significava esse ponto de vista uma concessão ao liberalismo? Não. Ele próprio salientava:

“O Partido, evidentemente, não pode entregar-se ao principio liberal do laissez-passer, mesmo na arte, mesmo por um só dia. A questão é saber quando deve intervir, em que medida e em que caso.”

Ensinava ainda:

O Partido orienta-se por critérios políticos e repele, na arte, as tendências nitidamente venenosas e desagregadoras.”

E mais adiante:

“Se a revolução destrói pontes ou monumentos, quando preciso, ela não hesitará em bater toda tendência artística que, por maiores que sejam as suas realizações formais, ameaçasse introduzir fermentos desagregadores nos meios revolucionários ou jogar, umas contra as outras, as forças internas da revolução, ou seja, o proletariado, o campesinato, os intelectuais. Nosso critério é, decididamente, político, imperativo e intolerante. Daí a necessidade de definir seus limites.”

A ele, porém, como aos fundadores do socialismo científico, repugnava a arte dirigida, instrumento puro e simples de propaganda partidária. A arte, como produto da vida social, reflete, não só pelo conteúdo como pela forma, as realidades de uma época e todas as suas contradições. Não existe, desse modo, arte sem conteúdo ou tendência. Imprimir-lhe, todavia, o caráter de propaganda partidária é convertê-la de sistematização de idéias. E a arte deixa de ser arte.

“O artista” – escrevia Plekhanov[2] – “expressa seu pensamento por meio de imagens, enquanto o publicista comprova suas idéias com argumentos lógicos em lugar de imagens, ou se as imagens, que criou, lhe servem para demonstrar tal ou qual assunto, não se trata de um artista, mas de um publicista, mesmo que escreva, em vez de ensaios e artigos, romances, novelas ou peças de teatro.”

A compreensão da arte dirigida, instrumento de propaganda política, jamais encontrou apoio nas teorias de Marx e Engels. Analisando a tragédia de Lassalle, intitulada Franz Von Sckingen, Marx aconselhou-o a seguir o exemplo de Shakespeare, porque via na “schillerização a transformação dos personagens em simples porta-vozes do espírito do século”, o seu maior defeito[3]. Engels, por sua vez, reiterava:

“Não sou em absoluto adversário da poesia de tendência como tal... Mas creio que a tendência deve surgir da própria situação e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é obrigado a dar pronta aos leitores a futura solução histórica dos conflitos que descreve[4]."

Shakespeare retratou os homens e a sociedade do seu tempo. A agonia de uma classe e a ascensão de outra. As tendências de seus dramas são as tendências do próprio desenvolvimento social de que brotaram. Schiller, ao contrário, transformou o teatro numa tribuna para sustentar suas teses. Estas não apareciam, como em Shakespeare, na medida do real desenrolar dos acontecimentos. O desenrolar dos acontecimentos é que estava em função do ideal, em função de suas teses. Wilhelm Tell consagrava o direito de assassinar tiranos. Por mais nobres que fossem suas atitudes políticas e seus ideais, a intencionalidade prejudicou a grandeza artística de sua obra.

“Quanto mais as opiniões (políticas) do autor ficam escondidas” – ponderava Engels[5] – “tanto melhor para a obra de arte. O realismo de que falo se manifesta mesmo fora das idéias do autor.”

E, anos mais tarde, Lênin repetira o mesmo, a propósito de Tolstói[6]:

“Se estamos diante da de um artista verdadeiramente grande, ele deve refletir, em suas obras, ao menos alguns aspectos essenciais da revolução.”

Essa orientação, contrária a que se transforme a arte em instrumento de propaganda partidária, foi seguida por outros intérpretes do marxismo como Franz Mehring e Rosa Luxemburgo. Rosa Luxemburgo declarou categoricamente:

“Esta novela, sem dúvida, não me agradou tanto como O Homem Rico e não apesar de (sublinhado pela própria R. L.), senão precisamente porque (idem) a tendência social é nesta mais acentuada. Numa novela não busco nunca o fundo, mas, antes de tudo, o seu valor artístico[7].”

A orientação de Trotsky, no que se referia à questão da cultura proletária, também acompanhava a tendência geral do pensamento de Marx e Engels, endossada por Lênin.

“O Marxismo” – dizia Lênin[8] – “conquistou sua significação histórica universal, como ideologia do proletariado revolucionário, porque não rechaçou, de modo algum, as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de evolução do pensamento e da cultura da humanidade.”

Lênin considerava ainda “profundamente justas e importantes” as palavras de Kautsky, quando salientava que “não é o proletariado o portador da ciência contemporânea, senão os intelectuais burgueses (sublinhado por K.K.)[9]. E não somente as ciências. As artes também. O proletariado – Explicava Rosa Luxemburgo[10] – “Nada possuindo, não pode, na sua marcha para frente, criar uma cultura nova em folha, enquanto conservar-se nos quadros da sociedade burguesa”. E concluía:

“Tudo o que pode fazer hoje é proteger a cultura da burguesia contra o vandalismo da reação burguesa[11]...”

Mas, uma vez libertado das cadeias do capital, poderia o proletariado criar a sua própria cultura? As condições econômicas, sociais e políticas não o permitiriam. A sua ditadura constituiria um semi-Estado, um Estado em desaparecimento, um regime de transição. Como construir uma cultura e uma arte do proletariado, se, com o estabelecimento de sua ditadura, começaria o processo do seu desaparecimento como classe? A arte e a literatura tomariam, naturalmente, outro cunho, novas formas, durante os anos de poder operário, em via de definhamento. Novas formas, não impostas por decretos nem predeterminadas burocraticamente, mas refletindo, como superestruturas, as situações históricas e o processo social da extinção das classes e, em conseqüência, do Estado.

A burguesia pôde desenvolver uma cultura e uma arte próprias. O destino histórico do proletariado, todavia, é bem diverso. O seu papel, ao assumir o poder, não é organizar outra sociedade de classes e sim acabar todas as classes da sociedade. Explica-se a sua ditadura como um regime de transição, em que, destruindo a burguesia, o proletariado destruirá a si mesmo como classe. Não poderia haver, portanto, uma cultura e uma arte proletárias, precisamente quando todas as classes começam a desaparecer. Não teriam sentido. Nem seriam possíveis. O marxismo jamais pretendeu substituir a dominação de uma classe por outra, mas liquidar com todas. Este o objetivo claro do poder transitório do proletariado. Um poder que definha na razão direta do desaparecimento das classes e, por conseguinte, do proletariado. A condição de existência de uma é a condição de existência da outra.

Rosa Luxemburgo indicava que “a classe operária só poderá criar uma arte e uma ciência própria depois de libertar-se completamente de sua atual situação de classe"[12]. E, criando uma arte e uma ciência próprias, após libertar-se de sua atual situação de classe, estas já não seriam proletárias, mas socialistas. Por isso Trotsky repetia que "a vitória histórica e a grandeza moral da revolução do proletariado consistem na colocação da primeira pedra de uma cultura em que não haverá diferenças de classes e que, pela primeira vez, será verdadeiramente humana”[13].

O livro de Trotsky provocou uma série de controvérsias. Tanto Lunatcharsky como Bukharin continuaram a defender o Proletkult, apesar da oposição de Lênin e das críticas de Trotsky. Lunatcharsky, embora considerasse a obra verdadeiramente notável, chegando mesmo a declarar que subscreveria sem vacilar os pontos de vista de Trotsky quanto ao comportamento do Partido Comunista diante dos intelectuais, principalmente dos paputchiki[14], atacou a sua concepção de cultura proletária. Trotsky, reconhecendo, segundo ele, apenas as culturas do passado – feudal e burguesia – e a cultura do futuro – socialista – apresentava a ditadura do proletariado como um período estéril de realizações artísticas e literárias. Bukharin, por sua vez, argumentava:

“A posição do companheiro Trotsky é errônea por uma simples razão. O companheiro Trotsky, em primeiro lugar, não leva em conta a duração do período da ditadura do proletariado. Em segundo lugar, não leva em conta a desigualdade do desenvolvimento da ditadura do proletariado nos distintos países. Conquistamos o poder. Temos a ditadura do proletariado. Mas temos essa ditadura do proletariado em condições concretas, caracterizadas pelo fato de que se acha rodeada de inimigos. Estamos em presença de um longo caminho da ditadura do proletariado, porque a conquista do poder pelo proletariado, em todos os países, se efetua de modo desigual. Conquistamos o poder num país. Em outros, não. Encontramo-nos diante de uma premissa: o prolongamento do caminho da ditadura do proletariado, o desenvolvimento desigual do movimento operário. Por isso, a literatura, que se forma, geralmente, imagem e semelhança da classe dominante, adquire inevitavelmente, traços específicos. Pode-se dizer o mesmo em outros termos: o companheiro Trotsky, na sua construção teórica, exagera a cadência de desenvolvimento da sociedade comunista ou, em outras palavras, o companheiro Trotsky exagera a rapidez do desaparecimento progressivo da ditadura do proletariado. Daí o seu erro teórico, do qual se deduzem as conseqüências que tirou.”

Se de um lado, Trotsky e Lênin tinham razão no problema da impossibilidade de uma cultura proletária, a previsão de Bukharin, quanto ao ritmo de desenvolvimento da revolução proletária mundial, mostrou-se mais acertada. Não que, depois de 1923, Lênin e Trotsky esperassem a vitória imediata do socialismo na Europa. Perceberam que se iniciava um período de refluxo. Trotsky, quando escreveu Literatura e Revolução, contava com décadas de lutas e, por isso mesmo, argumentava que as energias do proletariado não poderiam voltar-se para as questões da arte e da literatura. Talvez, porém, não imaginasse, àquela época (1923), que o refluxo se manifestasse de forma tão dramática, dentro da própria União Soviética, e as décadas de lutas acumulassem derrotas. E, conseqüentemente, a sua tese implicava certo exagero quanto ao desaparecimento da ditadura do proletariado, como dizia Bukharin.

Mas, se, por um lado, o proletariado, até 1945, não conseguiu nenhuma vitória, conforme Lênin e Trotsky esperavam, não pôde, por outro, criar, dentro da União Soviética, uma literatura e uma arte próprias. As obras do realismo socialista refletiram, pela sua mediocridade, não o desenvolvimento de uma cultura proletária, mas a degenerescência burocrática, que se cristalizou no estalinismo, exatamente por causa da desigualdade do desenvolvimento da ditadura do proletariado nos distintos países, ou, em outras palavras, por causa do atraso da revolução mundial. A literatura e arte daquele período se formaram à imagem e semelhança da burocracia.

As divergências entre Trotsky e Bukharin, no plano da cultura, constituíam apenas um aspecto de um conflito político mais profundo, que se tratava entre as diversas facções do partido Bolchevique e os dois interpretavam. Trotsky, teórico da revolução permanente, defendia o ritmo de coletivização e industrialização da URSS. Bukharin, àquele tempo (1925), situava-se na ala direita, simpatizava com o kulak, o camponês abastado, propugnava pela concessão de incentivos aos agricultores, desejava a industrialização em passos de tartaruga e, finalmente, fornecia a Stálin a munição teórica para a tese do socialismo num só país.

A derrota de Trotsky, após a morte de Lênin (1924), correspondeu, também, o estrangulamento de toda a atividade criadora, existente nos primeiros anos da revolução. A burocracia estendeu a sua teia sobre o terreno das artes e da literatura. Bukharin, que defendera o Proletkult, passou a defender juntamente com Karl Radek[15], a teoria do realismo socialista, que orientou em A. A. Zhdanov o seu máximo expoente:

“O camarada Stálin chamou os nossos escritores de engenheiros da alma humana. Esta definição te um significado profundo. Ele fala da enorme responsabilidade dos escritores soviéticos no que se refere à educação do povo, à educação da juventude. E fala da necessidade de não tolerar a dissipação no trabalho literário (...) Guiado pelo método do realismo socialista, estudando, atenta e conscienciosamente, nossa realidade, esforçando-se para penetrar, mais profundamente, na essência do processo de nosso desenvolvimento, o escritor deve educar o povo e armá-lo ideologicamente (...) Se a ordem social feudal e logo a burguesia, no período de seu florescimento, puderam criar uma arte e uma literatura, que afirmou o estabelecimento da nova ordem e cantou o seu apogeu, nós, que representamos uma nova ordem, a ordem socialista, a encarnação de tudo o que há de melhor na história da civilização e da cultura humana, estamos na melhor das posições para criar a literatura mais avançada do mundo, literatura que deixará muito atrás os melhores exemplos do gênio criador de todos os tempos.”[16]

Estas palavras retratam, fielmente, a mentalidade dominante, na União Soviética e nos países socialistas da Europa oriental, ao tempo de Stálin, mentalidade que, de certa forma, ainda sobrevive. A escola do realismo socialista não conseguiu, entretanto, impor os seus cânones estéreis a todos os países onde a revolução triunfou, depois de 1945. As concepções de Mao Tsé-Tung, pelo menos até a época da revolução cultural, aproximava-se muito mais das posições de Lênin e Trotsky do que das posições do realismo socialista.

“Estudamos o marxismo” – dizia Mao Tsé-Tung[17] – “com o objetivo de aplicar o ponto de vista do materialismo dialético e materialismo histórico na nossa observação do mundo, da sociedade, da arte e da literatura, e não com o objetivo de escrever discursos filosóficos em nossas obras artísticas e literárias. O marxismo abarca o realismo na criação artística e literária, mas não pode substituí-lo, do mesmo modo que abarca as teorias atômicas e eletrônica, na Física, mas não pode substituí-las. Os dogmas e as fórmulas vazias e esquematizadas destruíram, com certeza, nosso impulso criador e, mais ainda, destruiriam, em primeiro lugar, o marxismo.”

Defendia, como Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a preservação da herança cultural da humanidade, contra o esquerdismo artístico e literário:

“Devemos apoderar-nos do rico legado deixado pela arte e pela literatura do passado, tanto na China como do estrangeiro, continuar suas belas tradições. Mas devemos fazê-lo com nossos olhos postos nas grandes massas do povo.”[18]

E insistia:

“Devemos apoderar-nos de todo o belo legado artístico e literário, assimilá-lo em tudo o que é benéfico para nós e elevá-lo como um exemplo, quando tentamos elaborar a matéria-prima artística e literária, proveniente da vida do povo, do nosso próprio tempo e lugar.”[19]

Mao Tsé-Tung, como Trotsky, admitia “a livre competição de todas as variedades de obras artísticas”.

“Devemos rechaçar o sectarismo em nossas críticas artística e literária e, sob o princípio geral de unidade e resistência ao Japão, tolerar todas as obras literárias e artísticas que expressem todo gênero de atitude política.”

Salientava, igualmente, a necessidade de “estabelecer juízos acertados” sobre todas as variedades de obras artísticas, “segundo o critério da ciência da arte”, e mostrava que “as obras de arte, por mais progressistas que sejam, politicamente são impotentes, se carecem de qualidade artística”.[20]

Fidel Castro, em Cuba, permitiu também a mais completa liberdade de criação artística e literária, no campo da revolução, admitindo o florescimento das mais diversas escolas. "Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político, porque o mau poema político desserve a revolução" – diria, num discurso dirigido aos intelectuais. A sua luta contra o sectarismo (e ele mesmo ressalta que não se pode confundir sectarismo com radicalismo) tomaria uma amplitude muito maior, na sua política cultural, encarando a revolução como uma escola de pensamento livre, que não precisa de truques nem de fraudes para defender-se.[21]

Os problemas que Trotsky levantou, em Literatura e Revolução, continuam, assim, na ordem do dia. A literatura e a arte serão espelho ou martelo ou, a um só tempo, espelho e martelo. Realista ou abstrata, refletirá, não menos pela sua forma do que pelo seu conteúdo, a necessidade do homem, que deseja a sua emancipação, a angústia do povo que luta para se libertar. A arte será o espelho dessa realidade. E, quando o homem superar a sociedade de classes e a alienação, ela retornará às suas fontes reais na sociedade, às suas raízes humanas. A arte confundir-se-á nas relações concretas do homem com o próprio homem, do homem com a natureza.


por LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA