30 março, 2007

Os heróis de Lula não morreram de overdose

O segundo mandato de Lula da Silva não começou com uma pancada única como foi em 2003 com a reforma previdenciária. Mas que ninguém se engane, o que estamos assistindo é muito pior e ainda mais perverso. Porque são muitas pancadas, ataques amplos, vários deles com profundas e danosas conseqüências de médio prazo e que não estão sendo sentidas de imediato pelos trabalhadores e o povo porque são feitos no varejo.

Estamos no final do 1º trimestre do ano. Já foram anunciados o PAC e seu conjunto de medidas para tentar regulamentar um grande projeto de parceria público-privado, sem tocar um centavo na remuneração sagrada e orçamentária ao capital financeiro e ainda atirando sobre a classe trabalhadora. Embutidos nesse projeto estão a garfada no FGTS, o arrocho no salário mínimo e o congelamento dos salários dos servidores públicos.

Já fomos devidamente informados do ataque aos rendimentos da poupança, da tentativa de “regulamentar” o direito de greve no setor público, da parceria política e comercial com o governo Bush (o maior terrorista do planeta).

Some-se a isso a esculhambação do “espetáculo do crescimento” de cargos e ministérios para a montagem e acomodação do governo de coalizão.

Quando dava a impressão, após a visita de Bush, que estava esgotada a cota de barbaridades para o 1º trimestre do ano, quando, até pelo instinto humano de não desejarmos ver tantas más notícias em tão pouco tempo, ou por acreditarmos que nada pode ficar mais indecente do que já está, eis que, em uma mesma semana, em um espaço breve de três dias, Lula declara os usineiros como heróis mundiais e reabilita Collor de Melo.

A declaração ao heroísmo dos usineiros ocorreu na mesma semana em que a fiscalização do próprio ministério do Trabalho revelou as condições de semi-escravidão dos trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar em São Paulo, condições que já resultaram, por exemplo, em mais de uma dezena de mortes por exaustão!

Até onde irá a arrogância e a estupidez de capataz que o presidente tem demonstrado é uma questão a ser decidida pelos próximos anos. Façam suas apostas. Mas o que é gravíssimo é que estamos diante de um retrocesso histórico, tragicamente patrocinado por um governo oriundo do movimento operário e popular.

Pois, desde que Bush aqui esteve, vai ficando ainda mais claro que, por trás do bonito discurso das fontes alternativas de combustível, nas quais o Brasil, com seu etanol, ocuparia um papel de destaque no cenário internacional, está sendo operada a entrega e associação de setores do agronegócio com empresas norte-americanas para a produção do etanol, às custas de uma super exploração do trabalho, digna de século XVIII.

Quanto à reabilitação política de Collor, bem, dá apenas uma dimensão da perda de caráter e de qualquer padrão moral de coerência e memória histórica do próprio presidente; pior do que isso, representa uma bofetada em dezenas de milhões de homens e mulheres, que não dedicaram décadas de suas vidas para que um projeto de mudanças terminasse em tal grau de rendição e de abjeta revisão histórica.

Tomando a liberdade de parafrasear os versos de Cazuza, os novos heróis de Lula não morreram de overdose, mas, definitivamente, os nossos inimigos estão no poder.

Fernando Silva,
jornalista, membro do diretório nacional do PSOL e do Conselho Editorial da revista Debate Socialista

Leia a íntegra da fala de Fidel Castro sobre biocombustíveis

FIDEL CASTRO
no "GRANMA"

Mais de três bilhões de pessoas estão condenadas a mortes prematuras por fome e sede, em todo o mundo.

Não se trata de um número exagerado; na verdade, é uma estimativa cautelosa. Pensei bastante sobre isso depois da reunião do presidente Bush com as montadoras de automóveis norte-americanas.

No dia 26 de março, a sinistra idéia de converter alimentos em combustíveis se estabeleceu definitivamente como diretriz econômica de política externa para os Estados Unidos.
Um artigo da agência de notícias norte-americanas AP, distribuído a todos os cantos do mundo, afirmava, textualmente:

"WASHINGTON, 26 de março (AP). O presidente George W. Bush elogiou na segunda-feira os benefícios dos automóveis que funcionam com etanol e biodiesel, durante uma reunião com montadoras de automóveis na qual buscou estimular seus planos para combustíveis alternativos.

Bush disse que um compromisso dos líderes da indústria automobilística nacional quanto a duplicar sua produção de veículos acionados por combustíveis alternativos ajudaria a convencer os motoristas a abandonar os motores a gasolina e a reduzir a dependência do país com relação ao petróleo importado.

'Trata-se de um grande avanço tecnológico para o país', disse Bush depois de inspecionar veículos movidos a combustíveis alternativos. 'Se o país quer reduzir o consumo de gasolina, é preciso oferecer ao consumidor a possibilidade de tomar uma decisão racional.'

O presidente instou o Congresso a aprovar em regime acelerado um projeto de lei proposto recentemente pelo governo que disporia o uso de 132 bilhões de litros de combustíveis alternativos no país em 2017, e imporia padrões mais exigentes para o consumo de combustível em automóveis.

Bush se reuniu com o presidente-executivo e do conselho da General Motors, Rich Wagoner; com o presidente-executivo da Ford Motor, Alan Mulally; e com o presidente-executivo do Chrysler Group, Tom LaSorda.

Os participantes da reunião discutiram medidas de apoio à produção de veículos acionados por combustíveis alternativos, metas para desenvolver a produção de etanol com base em materiais como gramíneas e serragem, e uma proposta para reduzir em 20% o consumo de gasolina em prazo de 10 anos.

As discussões se realizaram em um momento de alta nos preços da gasolina. O mais recente estudo da Lundberg Survey sinaliza que o preço médio da gasolina nos Estados Unidos subiu em 1,58 centavo por litro, para US$ 0,69 por litro."

Acredito que reduzir e também reciclar todos os motores que consomem eletricidade e combustível é uma necessidade elementar e urgente para toda a humanidade. A tragédia não consiste em reduzir os gastos com a energia, mas sim na idéia de converter alimentos em combustíveis.

Hoje se sabe com toda precisão que uma tonelada de milho produz uma média máxima de 413 litros de álcool, a depender das densidades.

O preço médio do milho nos portos dos Estados Unidos se eleva a US$ 167 por tonelada; portanto, para produzir 132 bilhões de litros (35 bilhões de galões) de álcool seriam precisos 320 milhões de toneladas de milho.

De acordo com dados da Organização Mundial de Agricultura (FAO), a safra de milho dos Estados Unidos foi de 280,2 milhões de toneladas em 2005.

Ainda que o presidente fale em produzir combustível com base em grama ou lascas de madeira, qualquer pessoa pode compreender que são afirmações desprovidas de realismo. Para compreender basta dizer que 35 bilhões de galões querem dizer 35 seguido por nove zeros!

Virão mais tarde belos exemplos da produtividade por pessoa e por hectare que os experientes e bem organizados agricultores norte-americanos atingiram: o milho convertido em álcool os resíduos de milho convertidos em ração animal com 26% de proteína; o excremento de gado usado como matéria-prima para a produção de gás. Isso, claro, depois de elevados investimentos que só estão ao alcance das empresas mais poderosas, nas quais tudo precisa funcionar na base do consumo de eletricidade e combustível.

Se essa receita for aplicada aos países do Terceiro Mundo, veremos quantas pessoas entre as massas famintas de nosso planeta deixarão de comer milho. Ou algo pior: se financiamentos forem concedidos aos países pobres para que produzam álcool de milho ou de outros alimentos, não restará uma árvore para defender a humanidade contra as alterações climáticas.

Outros países do mundo rico planejam usar não só milho mas também trigo, sementes de girassol, de colza e outros alimentos na produção de combustível. Para os europeus, por exemplo, seria negócio importar toda a soja do mundo a fim de reduzir o gasto com os combustíveis de seus automóveis e alimentar seus animais com os resíduos do cereal, especialmente rico em todos os tipos de aminoácidos essenciais.

Em Cuba, diversos tipos de álcool são gerados como subproduto da indústria açucareira, depois da realização de três extrações, do açúcar ao sumo de cana. A mudança do clima está afetando nossa produção de açúcar. Grandes secas e chuvas recorde se alternam, e isso só permite produzir açúcar durante cem dias com rendimento adequado nos meses do nosso muito moderado inverno, de modo que falta açúcar por tonelada de cana ou falta cana por hectare cultivado devido às prolongadas secas nos meses de semeadura e cultivo.

Na Venezuela, pelo que sei, eles planejam usar o álcool não para exportação, mas sim para melhorar a qualidade ambiental de seus combustíveis. Por isso, independentemente da excelente tecnologia brasileira para a produção de álcool, em Cuba o emprego da tecnologia de produção direta de álcool a partir do sumo da cana não constitui mais que um sonho ou desvario daqueles que se iludem com essa idéia. Em nosso país, as terras dedicadas à produção direta de álcool podem ser muito mais úteis à produção de alimentos para o povo e à proteção do meio ambiente.

Todos os países do mundo, ricos e pobres, sem exceção alguma, poderiam economizar milhões de milhões de dólares em investimento e combustível se simplesmente promovessem a substituição das lâmpadas incandescentes por lâmpadas fluorescentes, algo que Cuba já levou a cabo em todos os domicílios do país. Isso significaria uma forma de resistir à mudança do clima sem matar de fome as massas empobrecidas do mundo.

Como se pode observar, não emprego adjetivos para qualificar o sistema e os donos do mundo. Essa tarefa pode ser perfeitamente realizada pelos especialistas em informação, pelos homens das ciências socioeconômicas e políticas honestos que existem em grande número no mundo e constantemente avaliam o presente e o porvir de nossa espécie. Basta um computador e um número crescente de redes de Internet.
Hoje temos pela primeira vez uma economia realmente globalizada, e uma potência dominante no terreno econômico, político e militar, que em nada se assemelha à Roma dos imperadores.

Alguns se perguntam por que falo de fome e sede. Respondo: não se trata do outro lado da moeda, mas sim das diversas faces de um outro objeto, como um dado que tem seis faces ou um poliedro com muitas faces mais.

Recorro, no caso, a uma agência oficial de notícias, fundada em 1945 e em geral bem informada sobre os problemas econômicos e sociais do mundo: a Telam. Reproduzo textualmente:

"Cerca de dois bilhões de pessoas viverão, dentro de apenas 18 anos, em países e regiões nos quais a água será uma recordação distante. Dois terços da população mundial poderão estar vivendo em lugares onde essa escassez gerará tensões sociais e econômicas de tal magnitude que poderiam levar os povos a guerras pelo precioso ouro azul."

Durante os últimos cem anos, o uso de água aumentou em ritmo mais de duas vezes superior ao do crescimento da população.

Segundo estatísticas do Conselho Mundial da Água (WMC, de sua sigla em inglês), se estima que, em 2015, o número de pessoas afetadas por essa grave situação suba a 3,5 bilhões.

A ONU celebrou em 23 de março o Dia Mundial da Água, conclamando os países a enfrentar a escassez mundial de água sob a coordenação da Organização de Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO), com o objetivo de destacar a crescente importância da falta de água em nível mundial, e a necessidade de maior integração e cooperação, que permitam garantir uma gestão sustentável e eficiente dos recursos híbridos.

Muitas regiões do planeta sofrem escassez severa de água, vivendo com menos de 500 metros cúbicos por pessoa/ano. Cada vez mais regiões padecem de falta crônica desse elemento vital.

As principais conseqüências da escassez de água são a quantidade insuficiente desse líquido para a produção de alimentos, a impossibilidade de desenvolvimento, industrial, urbano e turístico, e problemas de saúde."

É isso que a Telam tem a dizer.

Deixo de mencionar nesse caso outros dados importantes, como o derretimento das geleiras na Groenlândia e na Antártida, os danos à camada de ozônio e a crescente presença de mercúrio em muitos peixes de consumo habitual.

Há outros temas que poderiam ser abordados, mas pretendo simplesmente com estas linhas fazer um comentário sobre a reunião do presidente Bush com os executivos que dirigem as montadoras de automóveis norte-americanas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

15 março, 2007

Juventude e Militância

26/02/2007
Em sua “Carta à Juventude”, composta por apenas três parágrafos, Trotsky trata duas questões de maneira bem breve, porém com muita profundidade: Juventude e Militância. Já no segundo parágrafo desta carta, muitos se confundem quando ele se refere aos “velhos de 20 anos”. Obviamente ele não pretendia estabelecer uma caracterização etária. Mas se referia, na verdade, àquela parcela da juventude que não tem disposição de se entregar, aos jovens sem ânimo, sonhos e sem fé.
Um partido, sindicato, campo político, grupo terrorista ou qualquer outro tipo de organização que pretende mudar a sociedade, não sobrevive sem militância. Sem essas pessoas dispostas a se sacrificarem, capazes de decidirem e certas de que não receberão nada de material em troca, as organizações e organismos não justificam sua existência.
Juventude e militância não são, portanto, termos nominais. Possuem vida, dialética. Muitos se declaram “militantes” ou “revolucionári@ s” apenas por pertencerem a um grupo ou entidade ou por estarem filiados a qualquer partido. Da mesma forma muitos idosos declaram-se “juventude” apontando em suas carteiras de identidade mostrando terem menos de 30 anos.
Durante a revolução russa, muitos jovens assumiram papeis de protagonismo, mesmo antes dos 20 anos. O estado socialista cubano possui em sua gerência e nos ministérios parcelas de jovens da geração pós revolucionária. Os “velhos de 20 anos” eram os que ficavam dentro das salas de aula enquanto a revolução acontecia. Eram os que ficavam em casa guardados por Deus. Eram os homens que não sonhavam com a tal “socialização dos meios de produção”, mas sim com um bom emprego, bem remunerado, uma esposa “politicamente correta” e um automóvel. As “velas de 20 anos” eram as que, ao invés de reivindicarem a emancipação e seus direitos, reivindicavam bons casamentos, marido carinhoso, filhos graciosos e um microondas.
Os partidos socialistas e organizações revolucionárias estão abarrotadas de “velh@s de 20 anos”. Mais precisamente aquel@s “filiados” e “filiadas”. Que optam sempre pelas tarefas mais simples e que não se aprofundam na teoria, ou aqueles esquerdistas que acham que o radicalismo se mede através do discurso “soprano”, enfim, o discurso que dá o tom mais alto. Se reivindicam donos da tradição leninista, mas evitam quase sempre participar das ações combativas e de massa.
Já sobre a militância, na mesma carta Trotsky nos ensina que “o sacrifício somente não é suficiente. É necessário ter uma clara compreensão do curso dos acontecimentos e dos métodos apropriados para a ação”. Eu diria, inclusive, que isso é o mais importante para qualquer militante, e concordo que a compreensão dos acontecimentos e dos métodos de ação, só é obtida através da teoria e da experiência. Decepcionam- se, pois, os meros tarefeiros, bate-estacas ou agitadores! Para todos os herdeiros de Marx, “sem teoria revolucionária, não existe ação revolucionária” .
Sobre experiência, mais uma vez não nos referimos à idade. Muitos velhos de partido ou sindicato ainda não atingiram essa compreensão de que nos referimos. Mas esse tipo de compreensão, experiência e teoria são imprescindíveis à juventude revolucionária. Sob pena de “baterem com a cabeça na parede e converterem- se em burocratas velhos de 20 anos”. Essa tarefa é difícil, mas cabe a nós cumpri-la bem!
É certo que representamos uma parcela da juventude mais resoluta. É certo que as dificuldades da militância hoje são diferentes das de quando Marx escreveu n´O Manifesto Comunista que a liberdade dos jovens está condicionada a sua independência econômica para com os pais e familiares. Ainda hoje temos esse problema, porém uma enorme parcela da juventude já se emancipou economicamente, e hoje luta contra um turbilhão de novos entrepostos: O dinheiro, o capital, trabalho e as usurpações do capitalismo.
Conversando ontem com um amigo anarquista bem eclético, percebia seu desespero em tentar encontrar novas formas de mobilizar as pessoas, atrair os jovens e se comunicar com os vários setores do movimento estudantil. Mas será mesmo esse o nosso maior problema? Acreditar nisso seria subestimar o capital. Seria ainda desconsiderar o elemento mais fundamental dos nosso problemas. O fato das pessoas não quererem nem saber. Centenas de páginas em O CAPITAL problematizam esses fetiches, a aparência, a essência e etc. Mas não entrarei nesse mérito aqui. Não citarei Marx, nem Lênin, nem Trotsky, nem Gramsci e nem o Osvaldo Coggiola (risos). Citarei algo mais poético. Mario Quintana disse uma vez que: “O maior de nossos problemas é que ninguém tem nada a ver com isso”.
Existem vários níveis de comprometimento com essa causa, que não é nossa, mas que abraçamos. Utilizamos cursos de formação, seminários e etc, para tentar produzir e reproduzir organicidade. Porém nesse final de texto abandonarei o meu objetivismo, próprio dos instrumentais que recebemos para analises, para lançar uma afirmação questionadora. Abandono sem remorso, pois abandono ao mesmo tempo a perspectiva da totalidade, para dizer a companheiros, companheiras, camaradas, amigos e amigas: Cabe a cada um decidir a qual nível de comprometimento pertencerá. Cabe a cada um aqui decidir se será parte da solução, ou se será parte do problema. Se seremos velhos de 20, 22, 24 ou 25 anos, ou quem sabe se seremos um dia jovens de 70, 72, 74 e 75 anos.
T.


"Porque metade de mim é o que eu penso, mas a outra metade é um vulcão"
Tadeu Guerzet
Contraponto
Ciências Econômicas
DCE - UFES

13 março, 2007

Direito de greve na mira do governo

Somente um governo de ex-sindicalistas pode propor restrições ao direito de greve”. Com essa inacreditável declaração, durante visita a Guiana, o presidente Lula reforçou a disposição do governo em regulamentar a greve nos serviços públicos.

Se nessa ocasião Lula estivesse sendo assessorado por algum consultor de um grande grupo capitalista, possivelmente seria aconselhado a não ser tão explícito, a evitar o desgaste com tamanha demonstração de subserviência. Até porque, os verdadeiros interessados na restrição do direito de greve, entendem perfeitamente o papel que ocupa um governo oriundo do movimento popular e da esquerda para manter a agenda do Capital e aprofundá-la.

Houve outras tantas constrangedoras declarações de ministros, como a do também ex-sindicalista Luiz Marinho. Preferimos nesse espaço poupar os leitores delas para irmos diretamente ao debate.

Primeiro: a regulamentação, restrição ou a proibição de greves em alguns setores (como diretamente sugeriu o ministro Paulo Bernardo) sempre foi uma exigência do Capital. Não por acaso, coube a órgãos como a Folha de S.Paulo[1] começar a dar nome aos bois, pedindo a cabeça dos servidores da Anvisa e do INSS.

Rigorosamente, o direito de greve já vem sendo atacado pelo Capital há vários anos

através dos julgamentos de “abusividade”, multas aos sindicatos, interditos proibitórios, determinação de que um percentual da atividade não seja interrompida durante a greve.

Em oposição e em confronto a essa trincheira, a classe trabalhadora levantou as reivindicações de amplo e irrestrito direito de greve, nenhuma intervenção do Estado nos sindicatos, autonomia e liberdade de organização sindical e popular. Bandeiras históricas que ajudaram a produzir os próprios governantes que estão hoje dedicados a limitar o direito de greve... incluindo aqui a própria CUT, que nesse debate, a pretexto de ratificar a Convenção 151 da OIT, aceita “conversar” sobre o direito de greve no setor público.

Segundo: quem é “prejudicado” durante uma greve é o lucro, é o Capital, direta ou indiretamente, mesmo quando a greve ocorre nos serviços públicos, de transporte, incluindo serviços portuários e aeroportuários. O resto é campanha cínica, pois o desmonte dos serviços públicos, dos direitos sociais, as privatizações, o corte de verbas e recursos para áreas sociais, foi o que realmente importou para o Capital e o seu Estado, isso é o essencial para a classe dominante.

Pois sabemos todos que o drama diário da população para ter acesso à saúde e educação dignas, transporte de qualidade com tarifas baratas e tantos outros serviços, não tem nada a ver com a ocorrência de greves dos trabalhadores do setor público.

Terceiro: os socialistas, por princípio, devem se opor a qualquer tipo de regulamentação ou intervenção do Estado capitalista sobre direito de greve e de organização.

Aceitar algum tipo de regulamentação estatal é aceitar reduzir, limitar a força da classe trabalhadora e sua capacidade de ação independente, única possibilidade de fazer frente à classe dominante, de defender seus direitos e construir condições para fazer a relação de forças mudar a seu favor, o que evidentemente não é aceito pelo Capital e o seu Estado, que tratam sistematicamente de impor formas de coerção e tutela sobre a ação dos explorados.

São os próprios trabalhadores que devem ter o direito irrestrito de greve e total soberania para desenvolver a sua ação coletiva e o diálogo com o conjunto da população em relação à prestação dos serviços.

O governo Lula ameaça dar um passo ainda mais lamentável na ofensiva anti-democrática que vem sendo desenvolvida contra as classes trabalhadoras desde o governo Collor: ataques aos direitos sociais dos trabalhadores, criminalização dos movimentos sociais, com alvo nos sem-terra, e, agora, restrição do direito de greve nos serviços públicos.

Este novo fato reforça sobremaneira a necessidade de que uma agenda unificada dos movimentos sindical e popular combativos coloque esses temas em lugar de destaque, com uma enfática defesa do direito irrestrito de greve.

Fernando Silva,

jornalista, membro do diretório nacional do PSOL e do Conselho Editorial da revista Debate Socialista



[1] Editorial FSP em 6/3/2007.

Frente única para despoluir a esquerda

A esquerda socialista brasileira está vivendo em um ambiente hostil. Envenenado pela confusão promovida pelo governo Lula, mas também por nossas próprias fraquezas. A resposta para situações como essas costuma ser a tática da frente única. Mas, há quem defenda esse tipo de tática apenas para poluir ainda mais nosso meio.

O segundo governo Lula deve começar ainda mais conservador que o primeiro. Afinal, f oram feitos vários acordos em busca da reeleição. O mais simbólico foi o que permitiu a adesão do governo Blairo Maggi, governador do Mato Grosso, estado campeão nacional em desmatamento e mundial em queimadas. Mas há outros apoios sintomáticos, como os de Delfim Neto, Maluf, Dornelles, Collor de Mello, família Sarney, Jader Barbalho, Geddel Vieira, entre outros. Para piorar o quadro, o Congresso eleito tem um perfil ainda mais conservador. A pressão por medidas conservadoras vai subir. A perspectiva de o próximo governo depender da bancada do PMDB é sombria para quem luta por transformações sociais.

Por outro lado, o fenômeno que atinge os setores populares sob governos que apóiam é bastante conhecido. Trata-se da constante tensão entre pressionar para ver suas reivindicações atendidas e temer que pressão em demasia acabe enfraquecendo o governo que apóiam. Entre uma e outra atitude a maior tendência é haver mais confusão e paralisia política. E diante disso, a burguesia não ficará parada. Vai tentar atacar ainda mais direitos e conquistas, contando com grande ajuda do governo petista.

Este quadro caracteriza uma situação de enorme defensiva dos trabalhadores e explorados em geral. E nessas situações a tática recomendada é a da frente única. Ou seja, um chamado a todos os setores militantes do País para se unir em torno de tarefas concretas. Por exemplo, a luta pela a anulação das reformas neoliberais e outras medidas de mesmo tipo e contra novos ataques aos direitos da população. Somente no calor dessa batalha é que será possível manter um mínimo de unidade entre os que combatem na mesma trincheira, mesmo que alguns de nós tenham apoiado um governo que não pára de nos atacar. Não se trata de ter esperanças em burocratas, oportunistas e vendidos. Estamos falando de milhares de militantes sociais, cujo horizonte está preso aos limites da disputa institucional. Trata-se de oferecer a eles e elas referências para permanecer em luta, com independência de classe. Não referências retóricas, mas propostas concretas.

Na verdade, muitos setores já vêm defendendo essa tática, mas aplicam algo bastante diferente. Geralmente, o que acontece é um chamado pela unidade em que aqueles que a propõem ficam de olho somente nas diferenças e não no que pode haver de comum entre nós. A frente única funcionaria como um expediente para desmascarar as outras forças políticas, que seriam todas reformistas, oportunistas, capituladoras etc. E não se trata disso. A frente única é uma forma de criar um ambiente favorável para o avanço das lutas. Claro que em seu interior haveria disputa política. Mas tal disputa tem que se dar em torno das formas de fazer avançar a luta e não de auto-construção de correntes, partidos e coletivos a qualquer custo.

Não se trata de ser "bonzinho" ou "conciliador". Trata-se da sobrevivência da esquerda socialista. Nosso hábitat político está seriamente comprometido. Se não há oxigênio suficiente para todos não podemos nos dar ao luxo de poluir ainda mais nosso meio com divergências superficiais. Num contexto de desilusão e hostilidade em relação a partidos políticos somente a atuação comprometida com as causas populares pode começar a recuperar a confiança dos setores em luta nas organizações de esquerda. Aí sim, no calor do combate, podem cair as máscaras de setores burocratizados e oportunistas. Algo que não costuma acontecer apenas através exposições retóricas de divergências para audiências cada vez menores.

Faz parte dessa necessidade de melhorar nossa capacidade de sobrevivência a superação da fragilidade da elaboração teórica da esquerda brasileira. Temos que passar por um balanço rigoroso, incluindo crítica e auto-crítica que avancem para além de "meas culpas" formais. Muitas das análises feitas entre os socialistas estão presas a uma realidade de 20 ou 30 anos atrás. O balanço em relação ao papel do PT e da CUT, por exemplo, tem que sair do campo moral, superando as acusações de traição de "direções vendidas". É preciso estudar e debater fenômenos como a onda de migração dos anos 1970 do campo para as grandes cidades brasileiras, a reestruturação produtiva, a desindustrialização, a mudança do perfil da classe trabalhadora, a ocupação dos latifúndios pelo agronegócio, a questão ambiental, a importância fundamental do machismo na dominação de classe e do racismo na dominação burguesa, a ação sofisticada da grande mídia no sentido de impedir que qualquer informação, debate ou polêmica passe por fora de seus mecanismos, o desmonte do Estado, a ação das ONGs substituindo o Estado e recrutando quadros intelectuais que poderiam estar a serviço dos movimentos e partidos populares, a criminalização da pobreza. Enfim, são inúmeros aspectos da realidade que já receberam atenção de analistas isoladamente, mas não foram sistematizados para sua utilização política-ideológica pelos socialistas.

Frente única tem que expressar a unidade entre o encaminhamento de tarefas concretas junto aos que estão na luta e o debate aprofundado sobre nossos erros, acertos e a realidade que nos cerca. Com a ameaça concreta de novos ataques aos direitos e à organização dos trabalhadores os setores que melhor aplicarem essa tática terão enormes chances de crescerem. Um crescimento que não se daria apesar da situação defensiva da classe, mas como resultado do avanço do nível de consciência e recuperação da ofensiva por parte de seus setores militantes. Um crescimento como resultado da melhoria das condições gerais de nosso "bioma" e não do desempenho de alguns espécimes mais "adaptados" à hostilidade do meio. Não nos interessam águas podres com alguns poucos tubarões sobreviventes. E isso vale para todos os níveis de atuação: sindical, partidário, popular etc. Afinal, os verdadeiros socialistas não vivem em nichos. Fazemos todos parte do mesmo ecossistema.

Sérgio Domingues – janeiro de 2007

Militante do PSoL-RJ e integrante do Coletivo Revolutas

10 março, 2007

O Dia da Mulher nasceu das mulheres socialistas

Por Vito Giannotti, 8 de março de 2004


Quando começou a ser comemorado o Dia Internacional da Mulher? Quando começou a luta das mulheres por sua libertação? Qual é a influência do movimento socialista na luta das mulheres? E o 8 de Março, como nasceu? A data teve origem a partir do quê? Onde? Estas e outras questões mereceram uma atenção especial em 2003, quando nos jornais e na Internet apareceram repetidamente versões diferentes. Todas, no entanto, esqueceram a palavra-chave, que está na luta da mulher por sua libertação: mulher “socialista”.

Em 2003, nas vésperas do 8 de Março, o jornal cearense O Povo publicou um longo artigo de uma professora da Universidade Federal do Ceará (UFCE) que deixou muita gente assustada. O mesmo aconteceu com vários artigos que circularam pela Internet.

Para encarecer a dose, logo após a comemoração do Dia Internacional da Mulher, em 2003, o novo jornal que acabara de sair, Brasil de Fato, no seu número 1, também trazia um artigo da mesma professora da UFCE, Dolores Farias, que reafirmava o que ela havia escrito no jornal O Povo, dias antes.

Houve pessoas que ficaram furiosas com a contestação da origem da data do Dia Internacional da Mulher. Procurando entender o porquê desta confusão.

Na verdade, a questão da origem do 8 de Março já é discutida há uns 40 anos. Em 1996, o Jornal do Brasil trazia um artigo da professora da UFRJ, Naumi Vasconcelos, no qual ela dizia que a tal greve de Nova Iorque, em 1857, quando teriam morrido 129 operárias queimadas vivas, nunca existiu. E ela afirma que a origem desta data é bem outra.

No mesmo ano, em março, Conselho de Classe jornal do SEPE, Sindicato dos Profissionais de Educação da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, trazia um artigo da mesma professora Naumi, com o título sugestivo de: Quem tem medo do 8 de Março? Este mesmo texto da Naumi já tinha sido publicado no mensário Em Tempo, pouco antes.

Uma pesquisa de 12 anos

Neste artigo, a autora citava, como fonte fundamental para a discussão, um livro de uma pesquisadora canadense intitulado: O Dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas.

Este livro, da autora canadense Renée Côté, saiu em 1984, mas estranhamente ficou esquecido por várias razões. O livro da Renée é totalmente antiacadêmico, anticonvencional. Mas, mais do que a forma, o que fez o livro cair em esquecimento é o que ela afirma, que incomoda muita gente. Ela prova por a+b, ao longo de 240 páginas, que as certezas criadas nos anos de 1960, 70 e 80 pelos movimentos feministas, a respeito do surgimento do 8 de Março, são pura ficção.

Ela derruba um mito caro às mulheres feministas, que tanto penaram para afirmar esta data. Além disso, o livro acabou caindo no esquecimento porque é mais fácil aceitar versões já consolidadas de histórias, caras às nossas vidas, do que questionar mitos estabelecidos. Assim como, para muitos, é mais fácil aceitar a historinha de Adão e Eva, criados do barro, uns seis mil anos atrás, do que questionar as origens do homem, bem mais complexas, centenas de milhares de anos atrás.

Há um outro fator determinante que fez o livro da autora canadense cair no limbo: ela deixa transparecer, o tempo todo, sua visão favorável à autonomia dos movimentos sociais frente aos partidos e mostra uma prevenção à própria idéia de partido político.

O livro se insere no grande leito de luta autonomista, típica dos movimentos de esquerda dos anos 70. Isto cria uma animosidade com muitos setores da esquerda mais influente, que poderiam divulgar sua obra. Mas, deixando de lado simpatias, ou alergias, vamos entrar no cipoal deste mito.

A explicação da origem do mito da greve de Nova Iorque de 1857, nos EUA, e do esquecimento de outra greve real, concreta e julgada inoportuna pelo Partido e pelo Sindicato, de 1917 na Rússia, vamos ver só no final do artigo. A questão-chave é ver por quê, no mundo bipolar da Guerra Fria dos anos 60 do século passado, os dois blocos em disputa aceitaram a versão de uma greve de mulheres, em 1857, nos EUA, e esqueceram uma outra greve de mulheres, em 1917, na Rússia. Os motivos são mais políticos que psicológicos.

Há vários estudos, cada um acompanhado de uma vasta bibliografia, que vão no mesmo sentido das pesquisas da Renée Côté. Entre eles destacamos os artigos “8 de Março: Conquistas e Controvérsias” de Eva A. Blay, de 1999. Outro estudo é de Liliane Kandel, de 1982, “O Mito das Origens: sobre o Dia Internacional da Mulher”. Outro texto muito rico é da Sempreviva Organização Feminista (SOF), de 2000, “8 de Março, Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida”. Vamos apresentar a síntese destas recuperações históricas.

O clima mundial quando nasceu o mito de 1857

Na década de 60 o mundo vivia uma grande convulsão político-ideológica. Somente no começo dos anos 70, o jogo se define e o bloco ocidental americano, isto é, capitalista, leva a melhor sobre o bloco soviético, socialista. A chegada do homem à lua, por parte dos americanos, em 69, definiu o destino da humanidade por várias décadas e, quem sabe, séculos. A URSS, a partir dessa data, entra em rápida decadência e o bloco americano caminha rumo ao império neoliberal mundial.

Esta década foi um vendaval nos costumes e ideologias do mundo. Mexeu com todo o equilíbrio político-cultural do planeta. Os anos 60 começam com a vitória do povo da Argélia contra o colonizador francês que foi o estopim das guerras de libertação no Congo, Senegal, Nigéria, Ghana e em toda a África.

A China vivia sua Revolução Cultural, com o famoso Livro Vermelho de Mao Tse Tung, que influenciava milhões de jovens no mundo inteiro. O Vietnã, após ter derrotado a França em 54, enfrentava e preparava a derrota do maior exército do mundo. Os países ex-coloniais tinham criado o movimento dos Não-alinhados. O mundo árabe, sob a liderança de Nasser, começava a se mexer.

Enquanto isso, a Revolução Cubana, com os barbudos Fidel e Che, era um modelo para os revolucionários da América Latina e do mundo.

No bloco soviético, aumentava a contestação interna com a Primavera de Praga, em 68, na República Tcheca. Enquanto isso, a Igreja Católica vivia as dores do parto do nascimento da Teologia da Libertação, pós-Concílio Vaticano II, que negava o apoio a exploradores, opressores, colonizadores e senhores da guerra, com suas cruzadas, e começava a falar em libertação dos oprimidos.

No mundo ocidental, os costumes tradicionais eram contestados pela entrada em cena do mundo jovem: Beatles, Woodstock, Black Power, movimento hippie e Panteras Negras. Na América Latina, faziam-se guerrilhas contra ditadores representantes do capital local e capachos do imperialismo americano.

As mulheres americanas e européias haviam descoberto a pílula e as dos países do Terceiro Mundo, a metralhadora, nas guerrilhas lado a lado com os homens.

No Ocidente, os estudantes passaram dos livros de Marcuse a Alexandra Kollontai e Wilhem Reich com sua Revolução Sexual e A Função do Orgasmo. As mulheres americanas se manifestavam contra a Guerra do Vietnã e falavam em Women's Lib, libertação das mulheres.

Os estudantes erguiam barricadas em Paris, tomavam as ruas em Praga, Berkley e Rio de Janeiro e falavam de revolução e de amor: revolução social e sexual. E as feministas nas suas manifestações falavam de “mística feminina” e queimavam sutiãs nas praças públicas.

Nesse caldeirão cultural mundial, em Chicago, em 1968 e em Berkley, em 69, se retoma, através de boletins e jornais feministas, a idéia do Dia Internacional da Mulher. Só que se esquece de que no começo do século, quando nasceu o Dia da Mulher, se acrescentava a qualificação de socialista. Este dia tinha caído no esquecimento, enterrado por sucessivas avalanches históricas.

As duas guerras mundiais, a burocratização stalinista da União Soviética e o avanço do capitalismo ocidental na sua versão clássica americana, ou na sua versão socialdemocrata européia, cada vez menos socialista, não tinham interesse em comemorar o 8 de Março.

Nos países comunistas, após a 2ª Guerra Mundial, voltaram as comemorações do 8 de Março. Mas estas eram mais para louvar a política dos seus respectivos governos do que para encaminhar a luta pela total libertação da mulher.

É nesse clima político-ideológico que será retomada a idéia de se comemorar uma data internacional para a luta de libertação das mulheres.

A origem do mito da greve de 1857

O que estamos acostumados a ler nos boletins de convocação do Dia da Mulher é a história de uma greve, que aconteceu em Nova Iorque, em 1857, na qual 129 operárias morreram depois de os patrões terem incendiado a fábrica ocupada.

A primeira menção a essa greve, sem nenhum dos detalhes que serão acrescentados posteriormente, aparece no jornal do Partido Comunista Francês, na véspera do 8 de Março de 1955. Mas onde se dá a fixação da data do 8 de março, devido a esta greve, é numa publicação, que apareceu em Berlim, na então República Democrática Alemã, da Federação Internacional Democrática das Mulheres. O boletim é de 1966.

O artigo fala rapidamente, em três linhas, do incêndio que teria ocorrido em 8 de março de 1857 e depois diz que em 1910, durante a 2ª Conferência da Mulher Socialista, a dirigente do Partido Socialdemocrata Alemão, Clara Zetkin, em lembrança à data da greve das tecelãs americanas, 53 anos antes, teria proposto o 8 de Março como data do Dia Internacional da Mulher.

A confusão feita pelo jornal L ´Humanité não fala das 129 mulheres queimadas. Aonde se começa a falar desta mulheres queimadas é na publicação da Federação das Mulheres Alemã, alguns anos depois. Esta historinha fictícia teve origem, provavelmente, em duas outras greves ocorridas na mesma cidade de Nova Iorque, mas em outra época. A primeira foi uma longa greve real, de costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910.

A segunda foi uma outra greve, uma das tantas lutas da classe operária, no começo do século XX, nos EUA. Esta aconteceu na mesma cidade em 1911. Nessa greve, em 29 de março, foi registrada a morte, durante um incêndio, causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil, de 146 pessoas, na maioria mulheres imigrantes judias e italianas.

Esse incêndio foi, evidentemente, descrito pelos jornais socialistas, numerosos nos EUA naqueles anos, como um crime cometido pelos patrões, pelo capitalismo.

Essa fábrica pegando fogo, com dezenas de operárias se jogando do oitavo andar, em chamas, nos dá a pista do nascimento do mito daquela greve de 1857, na qual teriam morrido 129 operárias num incêndio provocado propositadamente pelos patrões.

E como se chegou a criar toda a história de 1857? Por que aquele ano? Por que nos EUA? A explicação, provavelmente, é a combinação de casualidades, sem plano diabólico pré-estabelecido. Assim como nascem todos os mitos.

A canadense Renée Côté pesquisou, durante dez anos, em todos os arquivos da Europa, EUA e Canadá e não encontrou nenhuma traça da greve de 1857. Nem nos jornais da grande imprensa da época, nem em qualquer outra fonte de memórias das lutas operárias.

Ela afirma e reafirma que essa greve nunca existiu. É um mito criado por causa da confusão com as greves de 1910; de 1911, nos EUA; e 1917, na Rússia.

Essa confusão se deu por motivos históricos políticos, ideológicos e psicológicos que ficarão claros no fim do artigo.

Pouco a pouco, o mito dessa greve das 129 operárias queimadas vivas se firmou e apagou da memória histórica das mulheres e dos homens outras datas reais de greves e congressos socialistas que determinaram o Dia das Mulheres, sua data de comemoração e seu caráter político.

Já em 1970, o mito das mulheres queimadas vivas estava firmado. Rapidamente foi feita a síntese de uma greve que nunca existiu, a de 1857, com as outras duas, de costureiras, que ocorreram em 1910 e 1911, em Nova Iorque.

Nesse ano de 1970, com centenas de milhares de mulheres americanas participando de enormes manifestações contra a guerra do Vietnã e com um forte movimento feminista, em Baltimore, EUA, é publicado o boletim Mulheres-Jornal da Libertação. Neste já se reafirmava e se consolidava a versão do mito de 1857.

Mas, na França, essa confusão não foi aceita tranqüilamente por todas e todos. O jornal nº 0, de 8 de março de 1977, História d´Elas, publicado em Paris, alerta para esta mistura de datas e diz que, em longas pesquisas, nada se encontrou sobre a famosa greve de Nova Iorque, em 1857. Mas o alerta não teve eco.

Dolores Farias, no seu artigo no Brasil de Fato, nº 2, nos lembra que, em 1975, a ONU declarou a década de 75 a 85 como a década da mulher e reconheceu o 8 de março como o seu dia. Logo após, em 1977, a Unesco reconhece oficialmente este dia como o Dia da Mulher, em homenagem às 129 operárias queimadas vivas.

No ano de 1978, o prefeito de Nova Iorque, na resolução nº 14, de 24/1, reafirma o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, a ser comemorado oficialmente na cidade de Nova Iorque.

Na resolução, cita expressamente a greve das operárias de 1857, por aumento de salário e por 12 horas de trabalho diário, e mistura esta greve fictícia com uma greve real que começou em 20 de novembro de 1909. O mito estava fixado, firmado e consolidado. Agora era só repeti-lo.

Por que a cor lilás?

A partir de 1980, o mundo todo contará esta história acreditando ser verdadeira. Aparecerá até um pano de cor lilás, que as mulheres estariam tecendo antes da greve. Daquela greve que não existiu. A mitologia nasce assim. Cada contador acrescenta um pouquinho. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, diz nosso ditado.

Por que não vermelho? Porque vermelhas eram as bandeiras das mulheres da Internacional. Vermelhas eram as bandeiras de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, delegadas dos seus partidos, à 1ª Conferência das Mulheres Socialistas, em 1907; e da 2ª, na Dinamarca, em 1910. Nesta última foi decidido que as delegadas, nos seus países, deveriam comemorar o Dia da Mulher Socialista.

A cor lilás na luta das mulheres tem uma origem engraçada. A feminista Sylvia Pankrust nos conta que esta foi adotada pelas sufragistas inglesas, em 1908, junto com outras duas cores, como símbolo de sua luta. Estas lutadoras pelo direito de voto escolheram o lilás, o verde e o branco. O lilás se inspirava na cor da nobreza inglesa, o branco simbolizava a pureza da luta feminina e o verde a esperança da vitória.

Historicamente, vamos reencontrar a cor lilás na retomada do feminismo, nos anos 60. O vermelho estava muito ligado aos Partidos Comunistas do Bloco Soviético que, na verdade, já tinham muito pouco de socialismo, ou de comunismo. Além disso, historicamente, vários destes partidos pouco apoio haviam dado às lutas específicas das mulheres.

A expressão "Libertação da Mulher" não era própria destes partidos. Neles, a luta da mulher era vista quase só com o objetivo de integrá-la à luta de classe. A luta feminista, para muitos comunistas, só atrapalhava a luta geral do proletariado. Tirava forças da luta principal.

Foi nesse clima que, nas décadas de 60 e 70 do século passado, a luta feminista foi retomada, num processo de auto-organização das mulheres. No movimento feminista havia uma forte crítica à prática da maioria dos partidos e sindicatos. Muitos movimentos se organizaram de forma autônoma, lutando para garantir sua independência.

Assim, várias feministas adotadaram a cor lilás, como uma nova síntese entre as cores azul e rosa. O vermelho das bandeiras das mulheres da Internacional foi esquecido. Na década de 70, as mulheres socialistas reafirmavam a origem socialista do 8 de Março, ao mesmo tempo em que várias delas assumiam a cor lilás como cor específica da luta feminista.

A libertação da mulher tem origem na luta socialista

A idéia da libertação da mulher nasceu na terra fértil do movimento socialista mundial, no final do século XIX e começo do século XX.

As raízes desta batalha podem ser encontradas nos escritos de Marx e Engels. A visão da família, da mulher proletária e da burguesa que permeiam A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Engels, é a base da visão dos socialistas sobre a necessidade da libertação da mulher proletária. A frase de Marx, “A opressão do homem pelo homem iniciou-se com a opressão da mulher pelo homem”, demorou para dar seus frutos, mas deu.

Contemporâneos de Marx, Paul Lafargue e Laura Marx foram batalhadores da igualdade e da libertação feminina, em seus vários escritos, sobretudo em seu livro mais conhecido, Direito à Preguiça.

Clara Zetkin, desde 1890, logo após a fundação da Internacional Socialista, começou a falar, escrever e organizar a luta das mulheres visando a integrá-las à luta socialista. Visando a que elas tomassem seu lugar na luta de classes, na revolução socialista que estava próxima.

Fora da 2ª Internacional, a tradição anarquista de uma parte do movimento operário também exigia a igualdade de homens e mulheres. A realidade, naquele começo do movimento da classe trabalhadora ainda era dura: partido e sindicato eram coisas de homem. Mas, mesmo nesse ambiente desfavorável, grandes mulheres passaram a discutir com as maiores lideranças da época e deixaram suas marcas em livros e artigos e na organização das forças revolucionárias.

Foi neste embate de idéias que um dos teóricos da Internacional, August Bebel, em 1885, escreveu seu livro A Mulher e o Socialismo. E é nesse grande rio que deságua o célebre A Nova Mulher e a Moral Sexual, de Alexandra Kollontai, mais de 20 anos depois.

Nesse ambiente de lutas operárias e de discussões teóricas, no campo socialista, é que nasceu a luta pela participação política e, pouco a pouco, pela libertação da mulher.

A partir do começo do século XX, essa batalha das socialistas se cruzou com a do movimento das mulheres independentes, em sua maioria pertencentes às classes média e alta, que estavam em campanha pelo direito de voto. Essas mulheres, nos Estados Unidos e na Inglaterra, ao reivindicar o sufrágio para as mulheres, ficaram conhecidas como as sufragistas e suas relações com as socialistas eram de conflito, devido às visões e a posição de classe diferentes.

As mulheres socialistas criam o Dia da Mulher

Desde 1901, nos EUA, logo após a criação do Partido Socialista, surge a União Socialista das Mulheres, com a finalidade de reivindicar o direito de voto feminino. Entre os anos 1900 e 1908, sempre nos Estados Unidos, nascem vários clubes de mulheres, uns intimamente ligados ao Partido Socialista, outros mais autônomos, anarquistas ou não. Todos exigiam o direito de voto para as mulheres.

Em 1908, a Federação dos Clubes de Mulheres Socialistas de Chicago toma a iniciativa, autônoma, não ligada oficialmente ao Partido Socialista, de chamar para um Dia da Mulher, num teatro da cidade. Era o domingo, 3 de maio. Os debates do dia tinham dois temas de pauta: 1. A educação da classe trabalhadora. 2. A mulher e o Partido Socialista.

Nessa conferência, o palestrante Ben Hanford repetiu uma das idéias-chaves de Engels no seu A Origem da Família da Propriedade e do Estado. Nas palavras do orador, de acordo com Engels, “As mais exploradas são as mães do nosso povo. Elas estão de mãos e pés amarrados pela dependência econômica. São forçadas a vender-se no mercado do casamento, como suas irmãs prostitutas no mercado público.”

Mas não foi esse encontro independente, no teatro The Garrick, de Chicago, que foi reconhecido pelo Partido Socialista como começo da comemoração do Dia da Mulher. A iniciativa desse dia tinha nascido fora da estrutura oficial do Partido.

O primeiro dia da Mulher, nacional, assumido pelo Partido, foi no ano seguinte, em Nova Iorque, em 28 de fevereiro de 1909. Em outras cidades do País, como Chicago, o dia foi celebrado em outras datas.

O objetivo desse dia, convocado pelo Comitê Nacional da Mulher do Partido Socialista americano, “era obter o direito de voto e abolir a escravidão sexual.” O panfleto de convocação dizia: “A realização da revolução das mulheres é um dos meios mais eficazes para a revolução de toda a sociedade.”

Desde o começo do século, nos EUA havia um importante movimento pelo voto feminino, fora da órbita dos socialistas. A maioria das mulheres do Partido consideravam esse movimento como um movimento de mulheres brancas e de classe média.

Dentro do Partido Socialista havia um constante vai-e-vem sobre esse tema. Por seu lado, as mulheres anarquistas não viam nenhum sentido na luta pelo voto, nem das mulheres e nem dos homens. O meio para construir uma nova sociedade, e a igualdade entre homens e mulheres, na visão anarquista, não seria certamente o voto, e sim a ação direta revolucionária. A principal porta-voz desta visão era a revolucionária anarquista Emma Goldman.

O ambiente americano favorecia esta reivindicação do direito de voto. Até o ano de 1909, somente em quatro estados era reconhecido o direito ao voto feminino. A extensão do voto para toda mulher americana só viria em 1920.

Na Europa, o movimento das mulheres socialistas, liderado por Clara Zetkin, também era cheio de zige-zagues.

No começo, dentro da Internacional, se levava uma guerra sistemática contra a luta pelo direito de voto feminino, visto como uma forma de desviar as forças revolucionárias das mulheres e considerado como uma reivindicação burguesa. Era assim que eram tachadas as sufragistas, seja da Europa que da América, pelos socialistas.

Essa visão européia será adotada pelo Partido Socialista americano, em meio a grandes debates e com vozes discordantes. No meio do calor e das contradições desse debate, na 1ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em 1907, em Stuttgart, 58 delegadas de 14 países elaboraram uma proposição que comprometia os vários Partidos Socialistas a entrar na luta pelo voto feminino. A resolução foi elaborada, na véspera, na casa de Clara Zetkin, por ela e duas camaradas, suas hóspedes: Rosa Luxemburgo e a única russa da Conferência, Alexandra Kollontai.

É nesse clima de embates que, em 1910, o Partido Socialista americano organiza, pela segunda vez, o Dia da Mulher no último domingo de fevereiro, em Nova Iorque. O objetivo do dia é declarado sem rodeios no convite: “Arrolar as mulheres no exército dos camaradas da revolução social.”

Esta comemoração, de 1910 foi marcada por uma grande participação de operárias. Eram as costureiras da cidade que haviam terminado uma longa greve pelo direito de ter o seu sindicato reconhecido. A greve durou de 22 de novembro de 1909 até 15 de fevereiro de 1910, quase na véspera do Dia da Mulher. Foi uma greve longa, dura, com fortes piquetes reprimidos com violência pela polícia, que prendeu mais de 600 pessoas. Encerrada a greve, as costureiras participaram ativamente da preparação e da realização do Dia da Mulher chamado pelo Partido Socialista.

Dois meses depois, em maio, no congresso do partido, realizado em Chicago, foi deliberado que o partido americano enviaria delegados ao Congresso da Internacional, a ser realizado em agosto, com a tarefa, entre outras, de propor ao plenário que o Dia da Mulher fosse assumido pela Internacional. Esse dia deveria tornar-se o Dia Internacional da Mulher, a ser celebrado pelos socialistas, no último domingo de fevereiro de cada ano.

Em agosto desse ano, antes do Congresso da Internacional, se realizou em Copenhague, na Dinamarca, a 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas. Foi então que as delegadas americanas levaram a proposta aprovada no Congresso do seu partido. Assim, aceitando a proposta das delegadas dos Estados Unidos, Clara Zetkin e outras camaradas propõem a realização anual do Dia Internacional da Mulher.

O dia ficou indefinido. Ficou a cargo de cada país escolher a data melhor para comemorar este dia. A resolução aprovada será publicada logo em seguida, no jornal dirigido por Clara, A Igualdade, em 29 de agosto.

As mulheres socialistas de todas as nações organizarão um Dia das Mulheres específico, cujo primeiro objetivo será promover o direito de voto das mulheres. É preciso discutir esta proposta, ligando-a à questão mais ampla das mulheres, numa perspectiva socialista.” A outra proposta, de comemorar o Dia da Mulher junto com a data já clássica da luta operária, o 1º de Maio, defendida por Clara e várias outras delegadas, foi derrotada. O dia da Mulher deveria ser comemorado num dia próprio, específico.

O Dia da Mulher se fixa em 8 de Março

Na Europa, a primeira celebração do Dia Socialista das Mulheres aconteceu em 19 de março de 1911, por decisão da Secretaria da Mulher Socialista, órgão da Internacional. Alexandra Kollontai, que propôs a data, diz que foi para lembrar um levante de mulheres proletárias, na Prússia, em 19 de março de 1848. Nesse dia, escreveu Kollontai, as mulheres conseguiram do rei da Prússia a promessa, depois não cumprida, de obter direito de voto.

Nos EUA, a tradição de realizar o Dia da Mulher no último domingo de fevereiro se repetiu em 1911, 1912 e 1913. Em 1914, será comemorado em 19 de março, seguindo a indicação da Kollontai.

Nos vários países da Europa, após a decisão da 2ª Conferência, onde havia um partido socialista, se começou a comemorar o Dia da Mulher.

Na Suécia, a primeira comemoração foi em 1º de março de 1911. O mesmo aconteceu na Itália.

Na França, o começo do Dia da Mulher foi em 1914, comemorado dia 9 de março, próximo ao Dia da Mulher na Alemanha.

Em 1914, pela primeira vez, na Alemanha, Clara Zetkin e as mulheres socialistas marcam data do Dia da Mulher para 8 de março. Não se explicou o porquê dessa data, pois não precisava. Era um detalhe sem interesse. A data era totalmente indiferente. Tinha que ser qualquer dia. Importante era a realização do dia.

Na Rússia, sob da opressão do czar, o primeiro Dia da Mulher só foi comemorado em 3 de março de 1913.

Em 1914 todas as organizadoras do Dia da Mulher foram presas e com isso não houve comemoração.

Em plena Guerra Mundial, em 1917, na Rússia, as mulheres socialistas realizaram seu Dia da Mulher no dia 23 de fevereiro, pelo calendário russo. No calendário ocidental, a data correspondia ao dia 8 de Março. Era o mesmo dia que, na Alemanha, tinha sido escolhido em 1914. Foi nesse dia que explodiu a greve espontânea das tecelãs e costureiras de Petrogrado.

Nesse dia, um grande número de mulheres operárias, na maioria tecelãs e costureiras, contrariando a decisão do Partido, que achava que aquele não era o momento para qualquer greve, saíram às ruas em manifestação por pão e paz. Declararam-se em greve. Essa manifestação foi o estopim do começo da primeira fase da Revolução Russa, conhecida depois como a Revolução de Fevereiro.

Em outubro o Partido Bolchevique lidera a grande Revolução Russa, nos “dez dias que abalaram o mundo”.

Essa greve foi documentada nos escritos de Trotsky e de Alexandra Kollontai, ambos membros do Comitê Central do Partido Operário Socialdemocrata Russo e ambos, depois, proscritos pelo stalinismo vencedor. Kollontai escreve: "O dia das operárias, 8 de Março, foi uma data memorável na história. Nesse dia as mulheres russas levantaram a tocha da revolução."

Mas o texto que melhor nos conta os fatos da greve das operárias da Petrogrado é um longo trecho de Leon Trotsky, no primeiro volume de seu livro História da Revolução Russa. Vale a pena acompanhá-lo:

O 23 de fevereiro era o Dia Nacional das Mulheres. Programava-se, nos círculos da socialdemocracia, de mostrar o seu significado com os meios tradicionais: reuniões, discursos, boletins. Na véspera, ninguém teria imaginado que este Dia das Mulheres pudesse ter inaugurado a revolução.

Nenhuma organização planejava alguma greve para aquele dia. Ainda por cima, uma das combativas organizações bolcheviques, o Comitê dos Tecelões de Rayon, formado essencialmente por operários, desaconselhava qualquer greve. O estado de espírito da massa, segundo Kaiurov, um dos chefes operários deste setor, era muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se um confronto aberto.

O Comitê julgava que o momento de começar hostilidades ainda não tinha chegado e que o Partido ainda não tinha forças suficientes e, ao mesmo tempo, a união entre soldados e operários ainda era insuficiente. Por isso tinha decidido não chamar para greve, mas para se preparar para a ação revolucionária, num futuro ainda não definido.

Esta era a linha de conduta preconizada pelo Comitê, na véspera do dia 23, e parecia que todos a tivessem aceitado. Mas, na manhã seguinte, contra todas as orientações, as operárias têxteis abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas aos metalúrgicos para pedir-lhes que apoiassem a greve.

Foi a contra-gosto, escreve Kaiurov, que os bolcheviques, seguidos pelos operários mencheviques e pelossocialistas de esquerda se juntaram à marcha.

Como se tratava de uma greve de massa, era necessário comprometer todo mundo para sair às ruas e estar à frente do movimento. Esta foi a resolução proposta por Kaiurov e o Comitê de Vyborov se sentiu forçado a aprová-la.

Pelos fatos, é então certo que a Revolução de Fevereiro foi iniciada por elementos da base que passaram por cima da oposição das suas organizações revolucionárias, e que a iniciativa foi tomada espontaneamente por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros, as operárias têxteis. (...) O empurrão final veio das enormes filas de espera em frente às padarias.”


Em 1921, realizou-se, em Moscou, na URSS, a Conferência das Mulheres Comunistas que adota o dia 8 de Março como data unificada do Dia Internacional das Operárias. A partir dessa Conferência, a 3ª Internacional, recém-criada, espalhará a data 8 de Março como data das comemorações da luta das mulheres.

Um dia esquecido e depois reinventado

Na Rússia comunista, após a vitória da Revolução de Outubro, nos primeiros anos do novo regime, o dia 8 de Março era comemorado todo ano, como o Dia Internacional da Mulher Comunista.

O dia, pouco a pouco, perdeu seu interesse e o adjetivo comunista foi caindo à medida que o ímpeto revolucionário da União Soviética começou a se arrefecer.

Nos últimos anos da década de 20 e, sobretudo, nos anos 30, o Dia Internacional da Mulher, seja comunista ou socialista, se perderá na tormenta que se abateu sobre o mundo. A ascensão do nazismo na Alemanha, o triunfo do stalinismo na URSS e o declínio da socialdemocracia na Europa e o vendaval da 2ª Guerra Mundial enterram as manifestações do Dia das Mulheres.

Fora dos países comunistas, no Ocidente, a humanidade só voltará a falar do Dia da Mulher, no final dos anos 60. Nesse lapso de tempo, o marco do 8 de Março, data da greve das operárias de Petrogrado, de 1917, foi esquecido.

A data da vitória das revolucionárias rebeldes russas, que impôs a derrota do absolutismo do Czar e deslanchou a Revolução Russa, não interessava aos comunistas do mundo todo. Estes, quase todos, viviam anestesiados pelos encantos ou pelo terror stalinista.

Retornar a lembrança daquele 8 de Março das operárias revolucionárias de Petrogrado também não interessava à Socialdemocracia, rejuvenescida após a destruição da Segunda Guerra Mundial e em conflito aberto com o comunismo dos países do bloco soviético.

8 de Março: uma data a celebrar

Menos que menos, a data do 8 de Março de 1917, na nascente URSS, interessava o bloco capitalista ocidental, inimigo mortal da Rússia comunista. É neste clima, propício ao esquecimento da verdadeira história do Dia da Mulher, já na década de 1950, nas publicações do Partido Comunista, na França, se começou a falar de uma forte luta das operárias americanas, em 8 de março de 1857. Talvez, a famosíssima greve do 1º de Maio, na Chicago de 1886 e as numerosas greves nas tecelagens americanas estimularam as fantasias e levaram a enfatizar a participação dos Estados Unidos na luta da mulher, o que favoreceu esta confusão de datas. Pouco a pouco se deslocou a data para 1857, em Nova Iorque. E aí, em ondas sucessivas de contadores, se chegou a historinha completa.

No dia 1º de Março de 1964, o jornal da CGT francesa, Antoinette, fala que “foram as americanas que começaram. Era 8 de março de 1857. Para exigir as 10 horas elas ocuparam as ruas de Nova Iorque”. É a continuação do que já tinha aparecido no jornal do PCF, nos anos anteriores.

E finalmente, foi assim, sem precisar de uma conspiração organizada por um suposto império do mal, que na Alemanha Oriental, em 1966, a Federação das Mulheres Comunistas noticiou a história do Dia da Mulher, enriquecida com o martírio das 129 queimadas vivas.

Tudo isto foi feito de forma confusa, misturando fatos com fantasias, com cada contador, escrevendo e inventando datas e detalhes.

E foi assim, sem nenhuma deliberação conspiratória, que o mito que acabava de ser criado, em 1966, no Leste Europeu, começou a ser divulgado e foi depois enriquecido fartamente, nos EUA do final dos anos 60 e em todo o mundo ocidental.

Depois disso, era só enriquecer o mito. O que foi feito, até sua cristalização em 1975, com a ONU e logo depois com a Unesco, em 1977.

Uma data muito rica que não precisa de mitos

Derrubar o mito de origem da data 8 de Março não implica desvalorizar o significado histórico que este adquiriu.

Muito ao contrário. Significa retomar a verdade dos fatos que são suficientemente ricos de significado e que carregam toda a luta da mulher no caminho da sua libertação. Significa enriquecer a comemoração desse dia com a retomada de seu sentido original.

Significa voltar às origens do ideal socialista da maioria das mulheres que lutavam por um mundo novo sem exploração e opressão do homem pelo homem e especificamente da mulher pelo homem.

Um dia que quer retomar a comemoração e a luta de um 8 de Março sem medos. Avançar sem medos e sem vergonha pelas derrotas sofridas pelas revoluções perdidas no século XX, rumo à conquista da libertação total das mulheres.

Significa integrar todos os novos e importantíssimos aspectos da luta da libertação da mulher, descobertos com a evolução histórica da humanidade no século XX, com a retomada de suas raízes socialistas.

Integrar à clássica luta libertária, socialista e comunista do começo do século XX, as contribuições de diferentes linhas de pensamento e países, que vão de Wilhem Reich a Simone de Beauvoir, de Herbert Marcuse a Samora Machel, de Betty Friedann a Rose Marie Muraro. Integrar toda a luta do feminismo para construir uma sociedade onde a mulher seja reconhecida como gente.

Integrar estas elaborações teóricas com as lutas e as experiências de vida de milhares de ativistas, militantes e organizadoras da luta das mulheres, no mundo inteiro: das guerrilheiras latino-americanas, às mulheres vietnamitas, das trabalhadoras das fábricas às plantadoras de arroz da Índia, das Mães dos desaparecidos argentinos às lutadoras pela reforma agrária do MST.

Uma longa luta sem medo da felicidade, sem medo do prazer. Sem medo de lutar por uma revolução, que deverá ser social, sexual, e profundamente cultural. Sem medo de levantar as bandeiras vermelhas da luta pela libertação da humanidade. A libertação de homens e mulheres.

Anexo
Datas básicas sobre a origem do 8 de Março

1900-1907
Movimento das Sufragistas pelo voto feminino nos EUA e Inglaterra.

1907
Em Stuttgart, é realizada a 1ª Conferência da Internacional Socialista com a presença de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai. Uma das principais resoluções: "Todos os partidos socialistas do mundo devem lutar pelo sufrágio feminino."

1908
Em Chicago (EUA), no dia 3 de maio, é celebrado, pela primeira vez, o Woman´s Day. A convocação é feita pela Federação Autônoma de Mulheres.

1909
Novamente em Chicago, mas com nova data, último domingo de fevereiro, é realizado o Woman's Day. O Partido Socialista Americano toma a frente.

1910
A terceira edição do Woman's Day é realizada em Chicago e Nova Iorque, chamada pelo Partido Socialista, no último domingo de fevereiro.

Em Nova Iorque, é grande a participação de operárias devido a uma greve que paralisava as fábricas de tecido da cidade. Dos trinta mil grevistas, 80% eram mulheres. Essa greve durou três meses e acabou no dia 15/02, véspera do Woman's Day.

Em maio, o Congresso do Partido Socialista Americano delibera que as delegadas ao Congresso da Internacional, que seria realizado em Copenhague, na Dinamarca, em agosto, defendam que a Internacional assuma o Dia Internacional da Mulher.

"Este deve ser comemorado no mundo inteiro, no último domingo de fevereiro, a exemplo do que já acontecia nos EUA".

Em agosto, a 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista, realizada dois dias antes do Congresso, delibera que: "As mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão (...) um dia das mulheres específico, cujo principal objetivo será a promoção do direito a voto para as mulheres". Não é definida uma data específica.

1911
Durante uma nova greve de tecelãs e tecelões, em Nova Iorque, morrem 134 grevistas, a causa de um incêndio devido a péssimas condições de segurança.

Na Alemanha, Clara Zetkin lidera as comemorações do Dia da Mulher, em 19 de março. (Alexandra Kollontai diz que foi para comemorar um levante, na Prússia, em 1848, quando o rei prometeu às mulheres o direito de voto).

Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher é comemorado em 26/02 e na Suécia, em 1º de Maio.

1912
Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher é comemorado em 25/02.

1912 e 1913
Na Alemanha, o Dia da Mulher é comemorado em 19/3.

1913
Na Rússia é comemorado, pela primeira vez, o Dia da Mulher, em 3/3.

1914
Pela primeira vez, a Secretaria Internacional da Mulher Socialista, dirigida por Clara Zetkin, indica uma data única para a comemoração do Dia da Mulher: 8 de Março. Não há explicação sobre o porquê da data.

A orientação foi seguida na Alemanha, Suécia e Dinamarca.

Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher foi comemorado em 19/03

1917
No dia 8 de Março de 1917 (27 de fevereiro no calendário russo) estoura uma greve das tecelãs de São Petersburgo. Esta greve gera uma grande manifestação e dá início à Revolução Russa.

1918
Alexandra Kollontai lidera, em 8/3, as comemorações pelo Dia Internacional da Mulher, em Moscou, e consagra o 8/3 em lembrança à greve do ano anterior, em São Petersburgo.

1921
A Conferência das Mulheres Comunistas aprova, na 3ª Internacional, a comemoração do Dia Internacional Comunista das Mulheres e decreta que, a partir de 1922, será celebrado oficialmente em 8 de Março.

1955
Dia 5/3, L´Humanité, jornal do PCF, fala pela primeira vez da greve de 1857, em Nova Iorque. Não fala da morte das 129 queimadas vivas.

1966
A Federação das Mulheres Comunistas da Alemanha Oriental retoma o Dia Internacional das Mulheres e, pela primeira vez, conta a versão das 129 mulheres queimadas vivas.

1969
Nos Estados Unidos, o movimento feminista ganha força. Em Berkley, é retomada a comemoração do Dia Internacional da Mulher.

1970
O jornal feminista Jornal da Libertação, em Baltimore, nos EUA consolida a versão do mito de 1857.

1975
A ONU decreta, 75-85, a Década da Mulher.

1977
A Unesco encampa a data 8/3 como Dia da Mulher e repete a versão das 129 mulheres queimadas vivas.

1978
O prefeito de Nova Iorque decreta dia de festa, no município, o dia 8 de Março, em homenagem às 129 mulheres queimadas vivas.