07 julho, 2007

Biocombustível, o mito do biocombustível limpo

Considerado a grande solução para os problemas do aquecimento global, o biocombustível e sua produção foram analisados pelo pós-doutor em química Arnaldo Cardoso. Em um trabalho intitulado “Biocombustível, o mito do biocombustível limpo”, o professor afirma que “esta qualidade da limpeza do álcool ainda está longe de ser real e continuamos emitindo poluentes para a atmosfera e poluindo nossas cidades, campos, rios e florestas”. A IHU On-Line entrevistou, por telefone, o professor Arnaldo Cardoso, para entender suas questões contra o chamado “biocombustível limpo”.

Durante a conversa, Arnaldo diz que não existe biocombustível limpo, mas sim combustível renovável, pois “quando lembramos de algo limpo, lembramos também do que não afeta o meio ambiente. O álcool, que é o combustível mais comum, utilizado em grande escala no Brasil, não é limpo”. Na entrevista, Arnaldo fala ainda dos incentivos governamentais em relação à produção do biocombustível e apresenta algumas alternativas para a questão da poluição.

Arnaldo Alves Cardoso é graduado em química pela Universidade de São Paulo. Na mesma universidade, concluiu seu mestrado e doutorado em química analítica. Na Texas Tech University, nos Estados Unidos, concluiu seu pós-doutorado em 1995. Em 1999, obteve o título de Livre Docência pela Universidade Estadual de São Paulo. Atualmente, Arnaldo trabalha na Sociedade Brasileira de Química e é professor da UNESP. Nesta universidade, desenvolve pesquisas como o desenvolvimento de método analítico para determinação de ozônio no ambiente e estudos sobre compostos de nitrogênio, presentes na atmosfera da região central do Estado de São Paulo. É autor de “Introdução à Química Ambiental” (Porto Alegre, ed. Bookman, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que existe hoje por trás do que se chama de biocombustível limpo?

Arnaldo Cardoso - A questão principal que estamos tentando discutir é que não existe isso que chamamos de biocombustível limpo. O que existe, na verdade, é um combustível renovável, o que é diferente. Quando lembramos de algo limpo, lembramos também do que não afeta o meio ambiente. O álcool, que é o combustível mais comum e utilizado em grande escala no Brasil, não é limpo. Um problema ambiental grave no momento é o aquecimento global, resultado de um acúmulo de gás carbônico na atmosfera. Todo combustível que adiciona gás carbônico na atmosfera está sujando, comprometendo a qualidade da atmosfera, e aumentando, portanto, o efeito estufa.

O álcool tem a seguinte propriedade: ele emite o gás carbônico quando queima o combustível. Só que a cana, quando cresce pelo processo de fotossíntese, retira o seu gás carbônico da atmosfera para transformar-se em uma nova planta. O resultado disso é que a utilização de álcool não acrescenta mais gás carbônico na atmosfera. Sob o aspecto estritamente do gás carbônico, ele pode ser considerado um combustível limpo. Quando se planta a cana, é necessário adicionar fertilizantes que entrem no ambiente e não circulem da mesma forma que o gás carbônico. O álcool, por sua vez, não tem um processo em que seja novamente reciclado.

IHU On-Line - Então, como a questão ambiental é afetada?

Arnaldo Cardoso - É afetada justamente pelo acúmulo de poluição. Se você coloca fertilizante, está modificando o meio ambiente. O álcool, portanto, não pode ser considerado um combustível limpo nem no momento em que se planta a cana. Outro problema é quando o álcool queima, emitindo óxidos de nitrogênio, que são responsáveis pela chuva ácida nas cidades. Mesmo a utilização do álcool, no fundo, em relação a outros poluentes, não pode ser considerada limpa, como afirmei. A imprensa precisa modificar essa forma de chamar o combustível. No momento em que ele é considerado limpo, significa que ao se usar um carro à vontade não se estará afetando o ambiente. Ora, nós temos que lembrar sempre que a utilização do álcool precisa ser feita de forma restrita e economizar combustível, para justamente não afetarmos ainda mais o ambiente. Devemos, também, lembrar que o combustível é apenas renovável.

IHU On-Line - Para o senhor, com o governo incentivando cada vez mais a produção do etanol, que tipo de conseqüência haverá no futuro se a produção e o consumo de álcool for maior do que é hoje o consumo de gasolina?

Arnaldo Cardoso - A questão principal que deve ser encarada por todos é que precisamos mudar nosso conceito de consumo de combustível. É claro que o álcool tem a vantagem de não aumentar o efeito estufa, o que é uma característica relevante, mas não podemos substituir a gasolina pelo álcool. Isso não resolverá o problema do planeta. Precisamos pensar em ter uma contribuição de álcool, aumentar a geração de energia eólica e diversificar as fontes de energia. Da forma que está sendo colocada pelo governo, parece que a salvação do planeta passa pela produção do biodiesel. No meu entendimento, reafirmo que isso não é possível, à medida que ele tem um limite de produção e afeta bastante o meio ambiente, assim como todo combustível. A própria produção de petróleo é altamente prejudicial à vida. Em lugares de onde se extrai petróleo, costuma haver o problema de navios que o despejam em alto-mar. Ou seja, a produção de combustível é sempre danosa, seja do biocombustível, seja do combustível fóssil.

IHU On-Line - O artigo que o senhor escreveu, “O mito do biocombustível limpo”, fala dos graves problemas da emissão de nitrogênio. Que tipos de métodos analíticos para aplicação em várias áreas poderiam suprir essa necessidade do uso de nitrogênio?

Arnaldo Cardoso - O nitrogênio é um dos macroconstituintes dos seres vivos. Sempre que se cria um novo organismo, vai se precisar de todos esses elementos. E caso se queira plantar soja, é preciso adicionar nitrogênio para o crescimento dos vegetais. Assim, passamos a ter uma grande quantidade de nitrogênio no ambiente, mas é impossível segurá-lo só no solo, isto é, apenas no local onde se quer produzir. Parte desse nitrogênio se espalha. Se ele cai numa floresta, facilitará o crescimento de vegetais e modificará a biodiversidade local. As plantas que precisam de mais nitrogênio serão favorecidas, mas outros não terão a mesma facilidade. Com isso, é possível modificar ambientes naturais. O grande problema do nitrogênio é esse.

Quanto à parte de análise química desses compostos de nitrogênio, existe a necessidade, por exemplo, de controlar o pH da chuva. É importante determinar sua acidez e entender se ela origina-se do hidrogênio. É importante, ao mesmo tempo, controlar a concentração de óxido de nitrogênio na atmosfera, porque ele atua como catalisador da formação de ozônio na atmosfera das cidades. Se há muito óxido de nitrogênio, pode-se ter muito ozônio, um composto mais prejudicial à saúde. Para fazer o controle, é necessário se fazer determinações de óxido de nitrogênio.

IHU On-Line - Há pouco tempo, Fidel Castro falou, em um artigo, que os Estados Unidos, para satisfazer a demanda atual de combustível fóssil, necessita destinar 121 % de toda superfície agrícola para a produção de biocombustível do país. Para o senhor, o que os governantes devem fazer para alertar e produzir racionalmente o biocombustível?

Arnaldo Cardoso - A questão é que nós, a meu ver, produziremos tanto biocombustível quanto se produz combustível do petróleo. Buscar essa meta é um grande erro. Para mim, precisamos reduzir a quantidade de combustível. O biocombustível pode fazer parte de uma solução, mas ele não é a solução. Não podemos imaginar jamais em substituir o petróleo por ele. Teríamos que produzir tanto adubo, utilizar tanta terra, que haveria problemas ambientais no futuro. A utilização dessa terra pode provocar problemas ambientais, como já foi observado, a exemplo da chuva ácida e da formação de ozônio. Busca-se o biocombustível para se resolver um problema global, mas a produção e a utilização dele cria problemas de poluição local.

Para termos uma idéia, em São Paulo, segundo dados da Cetesb em relação a 2005, 330.000 toneladas de óxido de nitrogênio foram emitidas por diversas fontes, sendo que 96% foi proveniente de automóveis. É uma quantidade muito grande de óxido de nitrogênio. Sabemos que a maior parte dessa frota é movida a álcool, ou, pelo menos, 25% de gasolina com álcool. Não estamos resolvendo um problema local. A poluição de São Paulo é grande e o biocombustível não vai resolver esse problema. Precisamos caminhar em outra direção, e a solução é consumir menos combustível.

IHU On-Line - O senhor tem alguma alternativa de política pública para reduzir o consumo de combustível?

Arnaldo Cardoso - A política pública é aquela que todo mundo pede. Precisamos programar um transporte público decente, porque ele, no Brasil, é quase impraticável para as pessoas utilizarem. Não só pelo excesso de pessoas transportadas, mas também até pela dificuldade de tempo entre um veículo e outro. Precisamos criar outras alternativas, como o uso de bicicleta, quando possível. Cidades pequenas, planas, precisam de ciclovias. São várias coisas que precisamos fazer, principalmente em relação ao transporte. O Brasil é um dos vilões em termos de gasto de combustível.

IHU On-Line - Temos algum exemplo de um país que tem trabalhado para esta redução?

Arnaldo Cardoso - Os países da Europa sempre tiveram essa preocupação. Darei o exemplo da cidade de onde estou falando: Araraquara. Eu vim de São Paulo em 1987, e o transporte público aqui era todo com ônibus elétricos, ou seja, com emissão praticamente nula de poluentes para a atmosfera. Hoje não existe mais o ônibus elétrico, ou seja, caminhamos em uma direção completamente diferente do que a Europa está fazendo. Em várias cidades da Europa existem bondes circulando. As pessoas precisam se preocupar com esse tipo de coisa. Não é o automóvel que solucionará o problema do transporte. Hoje em dia, é inviável se locomover na cidade com essa quantidade de automóveis. Não conseguimos mais viver em uma cidade grande ou média à custa de um automóvel. Precisamos caminhar em uma outra direção, ou seja, a cidade precisa ser repensada. Na minha opinião, devemos restringir cada vez mais o acesso de automóvel ao centro das cidades. As pessoas precisam parar de fazer tanta academia e andar mais a pé.

O importante é afirmar que o biocombustível deve ser utilizado com moderação, pois não vamos salvar o planeta com ele. É preciso saber que a sua utilização não minimiza o problema de poluição das grandes cidades.




Fonte: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=7078

Biocombustível, o mito do combustível limpo. Washington Novaes comenta pesquisa de especialista

"Para chamar álcool combustível de limpo é necessário colocar muita sujeira debaixo do tapete", escreve Washington Novaes, comentando o trabalho Biocombustível, o mito do combustível limpo, do professor Arnaldo Alves Cardoso, do Instituto de Química de Araraquara (Unesp), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 11-05-2007, sob o título O debate crucial dos próximos anos . Segundo Novaes, "no caso da exportação, iremos arcar com os prejuízos ambientais da produção".

Eis o artigo.

"Quem esteja acompanhando minimamente o noticiário sobre mudanças climáticas sabe que a questão central dos próximos anos e décadas no mundo e no Brasil será a energia - que fontes vamos usar, que vantagens e conseqüências negativas pode ter cada uma delas. O caso do etanol, o álcool da cana-de-açúcar, é uma dessas questões que já ocupam largo espaço na comunicação.

Terá o etanol impacto inflacionário (Estado, 7/5), como temem analistas do Banco de Compensações Internacionais, por aumentar a demanda de milho (ou de cana) e a escassez de terra para outros alimentos? Exigirá a Europa certificação do etanol brasileiro, para evitar ocupação de áreas do Pantanal e da Amazônia pela cana (Estado, 17/4)? Falta-nos um marco regulatório para essa área, como afirma o ex-embaixador nos Estados Unidos Rubens Barbosa (24/4)? A expansão da cana voltou a aumentar o preço das terras e a expulsar para mais longe culturas de alimentos e pecuária (15/4)? O etanol usado como combustível é um risco para a saúde humana (Stanford Report, 15/2)? É insalubre e injusto o regime de trabalho nas culturas de cana, que exige do trabalhador cortar de 10 a 15 toneladas diárias para ganhar entre R$ 24 e R$ 36 diários - obrigando esse cortador a desferir a cada dia milhares de golpes de facão, carregar 800 feixes de 15 quilos, segundo depoimentos?

E a oferta de energia? Precisamos mesmo de megahidrelétricas na Amazônia e em outras partes, com elevados custos financeiros, sociais e ambientais? Ou podemos até reduzir em mais de 30% nosso consumo, com programas eficientes de conservação e eficiência energética, como afirmam alguns estudos de universidades já citados aqui? Se as hidrelétricas não forem licenciadas, teremos de recorrer à energia nuclear (muito mais cara, insegura, sem solução para o problema do lixo nuclear), como ameaça o presidente da República?

Tudo isso está nos jornais e na TV. Mas não está num debate aprofundado de todas essas questões, liderado pelo próprio governo federal, como deveria ser - para que a sociedade pudesse informar-se com segurança, participar, opinar, como deve ser numa democracia. Mesmo no caso do etanol, além das questões mencionadas acima, muitas outras já deveriam estar nessa pauta - como a necessidade de um zoneamento para a expansão; as implicações das monoculturas; a garantia de suprimento (para evitar desabastecimento como em 1989/1990); e outras implicações da cultura da cana na chamada área ambiental e na de saúde.

Um trabalho que chama a atenção para isso é Biocombustível, o mito do combustível limpo, do professor Arnaldo Alves Cardoso, do Instituto de Química de Araraquara (Unesp). Começa ele lembrando que “esta qualidade da limpeza do álcool ainda está longe de ser real e continuamos emitindo poluentes para a atmosfera e poluindo nossas cidades, campos, rios e florestas”. Porque, se o etanol tem um balanço zero no que diz respeito ao efeito estufa (o carbono emitido na queima de combustível volta a se fixar na cana durante o seu crescimento) - e desse ponto de vista é mais adequado que os combustíveis fósseis -, há outros problemas a considerar com elementos incorporados sob a forma de adubo no processo de crescimento da planta (enxofre, nitrogênio, fósforo e potássio).

Enfatiza o estudo que “já dobrou a quantidade de nitrogênio ativo, que tem atividade química e biológica, com potencial para modificar o meio ambiente” (estudos internacionais recentes dizem que o nitrogênio carreado para os oceanos pela dispersão de fertilizantes - 100 milhões de toneladas anuais - já é um dos mais graves problemas para as águas marinhas). Entre outros danos, ele provoca a chuva ácida, a contaminação das águas e prejuízos para a biodiversidade de florestas naturais. E, como é solúvel na água, pode provocar efeitos indesejáveis “a centenas de quilômetros do local onde foi formado”. Além desse arraste para rios e lagos, problemas podem advir da ação de microrganismos no solo, transformando parte do adubo em gases ou de bactérias em raízes de leguminosas, tornando ativo o nitrogênio inerte do ar. E também com a formação de gases nitrogenados na combustão: “A cultura da cana, direta ou indiretamente, atua nesses quatro mecanismos de formação e dispersão de nitrogênio ativo no ambiente, já que a cada ano se utilizam 100 quilos de fertilizantes por hectare.”

Quando ocorre a queima da palha da cana, “só no Estado de São Paulo se emitem por ano cerca de 46 mil toneladas de nitrogênio ativo para a atmosfera”. A elas deve ser adicionado o nitrogênio gerado na combustão do etanol nos motores. Por isso, “todos os rios e lagos do Estado de São Paulo estão recebendo excesso de nitrogênio ativo”, que favorece o crescimento de grandes quantidades de algas e plantas, “e estas em algum momento apodrecerão e morrerão, modificando a qualidade da água. Processo similar pode ocorrer em florestas preservadas”.

Para complicar mais, parte do nitrogênio transforma-se em ácido nítrico e forma a chuva ácida. Pode também catalisar reações atmosféricas, gerando ozônio, “um grande vilão (para a saúde humana) quando formado na baixa atmosfera”. E ainda não é tudo: a queima da palha da cana emite outros gases e material particulado; a queima do álcool emite formaldeído e acetaldeído, vapores tóxicos (embora menos que o monóxido de carbono, o dióxido de enxofre e material particulado dos derivados do petróleo).

Conclui o trabalho que “para chamar álcool combustível de limpo é necessário colocar muita sujeira debaixo do tapete”. Lembrando ainda que, no caso da exportação, “iremos arcar com os prejuízos ambientais da produção”. Por isso, como no caso da matriz energética brasileira, nesta hora crucial, é preciso pôr sobre a mesa também a questão do etanol. É um direito da sociedade.'

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