15 fevereiro, 2009

Modernizar sem excluir

Marcio Pochmann

O ciclo de reformas inaugurado nos anos 90 prometia a modernização que, frente ao histórico de enorme exclusão social acumulada no Brasil, se esperava, em simultâneo, a redução das terríveis desigualdades de oportunidades. Decorrido mais de uma década da realização das reformas de corte neoliberal, colhem-se os frutos que apontam para o aumento das injustiças no país. Exemplo disso pode ser observado pelas indicações de agravamento da exclusão de pessoas no acesso à Previdência Social. Recorda-se que um dos pilares da reforma previdenciária efetuada na segunda metade da década de 1990 foi o abandono do princípio de acesso à aposentadoria por tempo de trabalho. Em conformidade com as novas regras estabelecidas, o trabalhador, para habilitar-se ao recebimento da aposentadoria precisa antes contribuir, em geral, por 35 anos (se homem) ou 30 anos (se mulher). Para além desse novo requisito obrigatório de acesso ao benefício da aposentadoria, há, ainda, carência mínima de 180 contribuições (o que corresponde a 15 anos, se as contribuições forem contínuas).


A recorrente intermitência da contribuição entre empregados sujeitos a maior rotatividade termina por comprometer o financiamento da Previdência

Desde a introdução do sistema de aposentadoria no Brasil, em 1923, sabe-se que o tempo de trabalho pode equivaler ao tempo de contribuição quando há estabilidade no emprego, seja pela existência do próprio pleno emprego, seja por garantias legais estabelecidas na contratação. Como as experiências de pleno emprego são praticamente inexistentes no país, registra-se o contingente atual de mais de 55% da força de trabalho sem conseguir contribuir mensalmente com a Previdência Social. Somente nos três décis mais ricos da distribuição da renda do trabalho há 70% das famílias com membros contribuintes da previdência, enquanto nos três décis mais pobres não chegam a 30% das famílias.

Entre os ocupados que conseguem contribuir para a Previdência Social, prevalece no setor privado o grave fenômeno da rotatividade no trabalho que torna muito difícil ao empregado cumprir o ano todo com 12 prestações mensais ao sistema de aposentadoria. Isso não apenas compromete o atendimento dos requisitos mínimos para o acesso à inatividade remunerada, como torna mais vulnerável o financiamento da própria Previdência Social. Como se sabe, a substituição do regime da estabilidade no emprego pela garantia do acesso ao FGTS ocorrida em 1966 fez com que o empregado e o empregador passassem a dispor de enorme flexibilidade na determinação da duração do tempo de trabalho. Em resumo, percebe-se que ocorreu o inegável aumento da desconfiança tanto do empregador em relação ao empregado, que demite sem causa quando lhe convier, como do empregado, que se desfaz do contrato de trabalho quando encontra alternativa ocupacional de melhor condição. De um lado, os investimentos em qualificação terminam sendo contidos, uma vez que a empresa teme fortalecer a formação de seu empregado sob pena de terminar o perdendo para outra firma, muitas vezes concorrente, bem como o próprio trabalhador desconfia de que a maior qualificação profissional possa limitar o raio de procura por outras formas de trabalho impostas pela recorrente rotatividade no emprego. De outro, o registro anual de mais de 12 milhões de demissões nos empregos formais, o que implica absurda taxa de rotatividade acima de 42% (duas vezes maior que a dos Estados Unidos) e dois milhões de processos trabalhistas no sistema judiciário (17% do total das demissões anuais).

Por conta disso, o Brasil possui quase 6 milhões de empregados com carteira assinada com menos de um ano no estabelecimento. Deste contingente que representa mais de 1/5 do total dos empregos formais, há 3,7 milhões de indivíduos (13,1% dos empregados com carteira no Brasil) que, a cada 12 meses, somente conseguem contribuir por cinco meses de prestação, o que torna a habilitação para a aposentadoria por tempo de contribuição extremamente difícil. Projetado no longo prazo, o trabalhador deverá precisar de aproximadamente 84 anos para reunir o tempo necessário de contribuição para se aposentar. Se considerar também que, em média, o início na vida laboral ocorre aos 15 anos de idade, compreende-se que somente por volta dos 99 anos de idade é que o acesso a aposentadoria por tempo de contribuição deverá ocorrer. Esse cenário parece ser pouco realista, uma vez que a expectativa de vida ao nascer encontra-se, na média da população brasileira, levemente acima dos 70 anos (esta média deve ser mais baixa para o grupo de pessoas de menor renda devido às características socioeconômicas, com desempenho de ocupações com maior incidência de doenças/ acidentes laborais e maiores jornadas de trabalho).

No contingente de maior vulnerabilidade no acesso à Previdência Social, deve-se acrescer também o grupo de mais 2,2 milhões de indivíduos (7,7% dos empregados com carteira no país) que, a cada 12 meses, somente conseguem contribuir com nove prestações. No longo prazo, eles precisarão de quase 48 anos para poder cumprir os requisitos básicos para se aposentar. Se novamente considerar que, em média, começam a vida profissional aos 15 anos de idade, somente por volta dos 62 anos alcançarão as condições necessárias para a aposentadoria por tempo de contribuição. Mesmo que minimamente factível, dada a expectativa de vida no Brasil, não se pode dizer que esse cenário traga alento a essa parcela dos trabalhadores brasileiros. Nesse sentido, a aposentadoria por tempo de contribuição permanece uma meta incerta, quando não inatingível, apesar das contribuições realizadas ao longo da trajetória ativa do trabalhador. Isso porque o emprego formal em expansão tem sido justamente aquele de maior rotatividade, o que contribui para a formação de uma nova legião de excluídos fundamentados pelas reformas neoliberais da década de 1990. Em função disso, cabe destacar que a recorrente intermitência da contribuição entre os empregados sujeitos à maior rotatividade termina por comprometer o financiamento da própria Previdência Social, uma vez que 21% do total dos empregados formais do país contribuem menos de 12 meses a cada ano de sua vida ativa no mercado de trabalho. Ademais das debilidades na sustentação do seu financiamento no Brasil, percebe-se como a busca da modernidade torna-se falsa, na medida em que termina gerando exclusões adicionais de pessoas que, mesmo trabalhando e contribuindo, deixam possivelmente de ter acesso à Previdência Social.


Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Escreve mensalmente às quintas-feiras.

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