16 fevereiro, 2009

Tarifa Zero

Criando as condições para a tarifa zero

CartaCapital: No livro Um governo de esquerda para todos, Paul Singer, secretário de Planejamento do governo, fala sobre esta reunião em que o secretariado estava preparando o Orçamento de 1991, e que havia uma certa frustração pela ação do governo, que não estava realizando grandes projetos. E então surgiu a história da tarifa zero, você apresenta a idéia da tarifa zero.
Lucio Gregori:
É como ele fala no livro, mesmo. Talvez eu contasse com poucas diferenças, nuances. Eu simplesmente já estava maquinando aqui o seguinte: teria um seminário, encontro dos secretários de Transporte, sei lá, qualquer dessas coisas que os técnicos gostam de fazer, e iria falar: “Olha, ou entra por uma linha tal – eu nem tinha nome, tarifa zero, subsídio radical, pago indiretamente, uma coisa assim – ou nós vamos ficar nessa discussão interminável”. Então eu achei que, indo eu, na qualidade de secretário de Transportes de São Paulo, falar esse troço num seminário... Eu era muito visado, secretário de Transportes da prefeitura era duplamente visado.

Então, o que eu fiz? Cheguei na reunião do secretariado, uma reunião normal, como tantas outras. Numa certa altura, falei: “Prefeita, gostaria de fazer uso da palavra, dar uma informação que acho importante. Olha, hoje à tarde vai ter uma reunião assim, assim, assado, e eu vou lá na qualidade de secretário, mas vou dar uma opinião particular, não como secretário, mas como profissional, como ser racional, digamos assim. Eu vou dizer isso, isso e isso a respeito disso, pois eu acho que esse problema não tem solução”. Fui lá, fiz um discurso, acho que o Singer botou até melhor que eu. Não sei o que isso provocou nas várias pessoas. Sei à posteriori que em algumas provocou indignação forte. Mas aí, vou almoçar com o Sandroni, tal como ele conta. Ele faz uma versão que eu confesso a você não tenho essa total certeza, de que eu pretendia divulgar a tarifa zero, mas que o Sandroni teria me convencido a fazer imediatamente, e daí ir para o gabinete da Erundina.

Acho que não foi bem isso. Acho que ao discutir com o Sandroni, nós dois meio que chegamos à conclusão que valia a pena falar isso com a Erundina com mais detalhes. Ele, tendo ouvido aquilo, percebeu - Sandroni era bastante inteligente, economista -, sacou na hora o tamanho do torpedo, e foi isso que nos levou naquele mesmo dia, depois do almoço, a bater um papo com a Erundina. E Erundina, conforme diz o Singer, vislumbra naquilo alguma coisa.

CC: Topou na hora?
LG:
Na hora, cinco minutos. Porque ela vislumbrou duas coisas. Primeiro, ela saía do cantinho na questão dos transportes, pelo menos ela jogava um ás de ouro na mesa. Outra, ela falou: “Eu vou conseguir levar o povo pra Câmara dos Vereadores exigindo a aprovação do projeto”. O que eu achei, hoje à distância, até um pensamento um pouco ingênuo dela. Mas ela imaginava pressão popular pra fazer isso. E ela saía do cantinho que estava na Câmara também. E, além do mais, ela concordava com a fundamentação da coisa.

Passei um mês falando com a assessoria jurídica, porque eu queria fazer um projeto criando uma taxa, chamada taxa transporte, que já era um estudo existente no partido anos atrás, para que essa taxa fizesse um fundo, que custeasse o serviço de ônibus. A prefeita estava bancando, cobrando do assessor jurídico: “Como é, já fez, estão estudando?”. A assessoria jurídica chegou à conclusão que essa proposta era inconstitucional. Porque só é possível criar novas taxas através de legislação federal. O município não pode criar taxas novas, isso é da Constituição.

Eu estou à tarde no gabinete do secretário, Mauro: “E agora, Mauro, o que nós fazemos?”. Isso aqui é o pulo do gato dessa história toda. Ele vira e fala: “Só tem um jeito. Só se a gente fizer uma reforma tributária calcando a moleira no IPTU dos ricos e fazemos o fundo”. Eu falei: “É isso”. Liguei pra Erundina na hora, falei: “Erundina, preciso conversar com você”. Fui lá, expliquei pra ela, ela falou: “É isso, vamos”. Chamou o Secretário de Finanças e mandou fazer uma proposta de reforma tributária.

CC: O texto dele dá a entender que no meio dessa discussão sobre a proposta orçamentária para 1991, a prefeitura estava meio... Todos estavam insatisfeitos. Não estavam conseguindo fazer nada grandioso. E essa idéia veio como salvação da lavoura.
LG:
É possível, para alguns.

CC: Consideremos que foi isso que aconteceu. Você acha que em outro contexto, sem essa insatisfação, a Erundina a aceitaria da mesma forma?
LG:
Essa leitura do Singer precisa ser matizada, porque o Singer foi um que aderiu à idéia da tarifa zero pelas razões que inclusive ele fala no texto. Ele compreendeu profundamente o que estava por trás disso tudo. Agora, não sei em que medida tem um pouco de projeção dessa visão dele...

CC: O Singer escreve, então, do ponto de vista de quem aceitou a idéia.
LG
É, exatamente. Tem esse viés. Eu acho que aqueles todos que passaram pelo governo naquela época, aqueles que eram de origem petista – e o PT era um partido radical –, ao chegarem no governo verificaram que a dificuldade de fazer as coisas é imensa, é imensa. O sistema econômico capitalista e a sociedade estão organizados de um jeito, de um modo tal que não dá para mudar de hoje para amanhã pelas vias legais. Não é à toa que existe a revolução. Só que isso você aprende ao vivo. Acho que essa necessidade de encontrar uma coisa que marcasse, que fosse a cara do governo, ele cita isso lá, só usava um outro termo, não era cara, uma marca, uma coisa assim.

CC: E faltava o quê para tocar adiante a tarifa zero?
LG:
Faltava mandar o Projeto de Lei.

CC: Montar o Projeto de Lei foi rápido?
LG:
Foi, porque o projeto era simples.

CC: O projeto do Fundo, que ia viabilizar a tarifa zero, foi paralelo ao projeto de municipalização?
LG:
Não, aí era só tarifa zero. Mas a tarifa zero pressupunha a municipalização. Mas não estava dito que pressupunha.

CC: A municipalização foi realizada quando? Foi em 1991?
LG:
Não, isso que eu estou lhe falando é final de 1990, a tarifa zero. E a municipalização foi ao longo de 1991 e se implementou em 1992.

CC: E então vocês montaram o projeto...
LG:
O projeto, a reforma tributária correspondente, mudou-se a escala de IPTU...

CC: Havia discussão sobre outras fontes de recurso além do IPTU? O IPVA, por exemplo?
LG:
Não, IPVA é estadual, não tinha mais nada.

A resistência do PT à proposta da tarifa zero

CartaCapital: A Erundina topou. E o PT?
Lucio Gregori:
Pra minha surpresa, os vereadores do PT , no geral, ficaram contra o projeto. Por quê? Disseram: “Vai mandar um trambolho, um torpedo desse tamanho, numa Câmara que a gente já não tem muita possibilidade. Agora se fecham todos os canais de negociação interna”. Porque eles raciocinavam, como sempre raciocinam, na tal governabilidade. Ela já não tinha feito acordo com nenhum vereador, agora vinha encostar a Câmara dos Vereadores no cantinho, com um projeto desses? Esse momento foi muito dramático. O líder do partido na Câmara... Teve uma reunião que a Erundina chamou, que ela falou: “Olha, tem um grande projeto que eu quero anunciar a vocês”. Anunciou primeiro para os vereadores, depois ela se reuniu com todos os administradores regionais, me fez contar qual era o projeto. Ela fez várias reuniões e falava: “O Lúcio vai explicar”. E eu explicava. “E eu vou fazer esse projeto”, ela dizia.

CC: Quem era o líder? Era o Whitaker?
LG:
Não, o Whitaker era líder do governo. Esse era o líder da bancada. Maurício Faria o nome dele. Ele vai nessa reunião, como líder do PT, e fala: “Eu não admito que isso possa acontecer” – porque a relação era muito democrática no governo – “eu não admito que aconteça isso, que uma pessoa que não tem experiência, nova no cargo, que não tem tradição, que blábláblá, de repente vem com um projeto megalomaníaco, que pode comprometer nosso governo”. Ele não tinha entendido bem. Foi a primeira vez que eu fiquei muito indignado. Eu virei pra ele e fui literal. Disse: “Enquanto você estava de fraldas, eu era o funcionário número 6 do Metrô. Portanto eu conheço, sim, transporte e conheço mais do que você pensa. E além do mais, esse projeto é um projeto político, de que lamentavelmente você não entende nada, apesar de você ser vereador”. Algo assim. Foi duro. Foi uma reunião horrorosa. Você pode imaginar eu falando isso pro líder da bancada do partido, a prefeita...

CC: Quantos vereadores o PT tinha?
LG:
Na época tinha 12. Todo mundo era contra, se bem me lembro. Ou, pelo menos, havia forte resistência.

CC: Que argumentações apareciam?
LG:
“Não tem condição política. Ônibus de graça não tem cabimento. Isso não há como fazer, no mundo inteiro não existe. De onde é que foram tirar uma coisa dessas?”. Era por aí, não tinha um argumento substantivo que dissesse: “Isso é uma coisa insensata”.

CC: Como se posicionava o PT municipal?
LG:
PT municipal ficou envergonhado e fez uma notinha dizendo que era a favor. Fez e não fez mais nada. Burocrático. O presidente da CUT regional, Jorge Coelho, também. Me entregou uma cartinha de apoio da CUT numa festividade pro Nelson Mandela nos salões da prefeitura. Ele me deu assim, falando: “Lúcio, essa é a coisa da CUT”. “A CUT reunida manifesta seu apoio a um projeto blábláblá”. Burocrático, não fez nada. Provavelmente era contra também, só que não tinha como dizer que era contra.

A Erundina reúne o secretariado. Explicou o projeto tarifa zero. Falei, defendi com bastante versatilidade. E ela virou e falou: “Então agora é o seguinte. Nós vamos fazer todo final de semana, sábado e domingo, reuniões plenárias com a população, toda a cidade, para explicar o projeto, debatê-lo. A gente precisa arregimentar força para aprovar”. Houve uma resistência imensa. Paulo Freire, que é um cara acima de qualquer suspeita, secretário de Educação, vira e fala: “Mas Erundina, você não acha que está exagerando em fazer ônibus de graça?”. O pessoal do Metrô, do sindicato metroviário, esses saíram batendo duro também, porque se arvoravam em técnicos. “Esse projeto está completamente furado, não tem a menor viabilidade, tecnicamente não sei o quê”. Foi aí que eu disse pra eles: “Olha, isso é uma decisão política.
Tecnicamente tudo tem solução. Decisão técnica é fazer corredor com metro pra lá, com metro pra cá. Isso que estamos discutindo é divisão do bolo, gente. Quem vai pagar o sistema de transporte: usuário de ônibus ou quem dele se beneficia?”.

Aí a discussão ficava pesada. Eu tive episódios muito curiosos. Lula, perguntado pela mídia, aproveitando pra dar mais uma na Erundina, diz o seguinte: “Não, o trabalhador não precisa de ônibus de graça, trabalhador precisa ganhar bem para pagar um sistema de transporte decente”. Nesse momento, eu posso lhe dizer, cheguei à conclusão de que Lula não era aquilo que eu imaginava. Se ele pensa isso ele não entendeu nada, nada. José Genoíno era deputado federal e apoiava muito a Erundina. Numa reunião no diretório, não sei por que, com o Lula presente, Genoíno brinca com a Erundina, fala: “Erundina, um subsídio de tarifa grande tudo bem, mas ônibus de graça, Erundina? Pô, você agora abusou, hein?”. Falou brincando, mas era o que ele pensava.

Olha, foi uma experiência definitiva pra mim. Eu cheguei à conclusão que aqueles posicionamentos não eram de esquerda, não, no sentido pleno da palavra. Sobretudo porque, naquela época, o PT era tido como um partido revolucionário. E essa era uma proposta indiscutivelmente “revolucionária”.

As dúvidas da população sobre o assunto

CartaCapital: Quando você tentava convencer a população, como era este debate?
Lucio Gregori:
A população, é bom esclarecer a você, veiculava perguntas pra mim que eram montadas pela mídia e pelos opositores. Por exemplo: “Se o transporte está tão ruim pago, de graça vai ficar pior”. E perguntavam isso pra mim, é claro. Nada a ver uma coisa com a outra. “E eu que sou inquilino, meu IPTU vai aumentar muito”. A direita tinha implantado isso: “E os inquilinos das casas, como é que vão fazer?”. Eu falava: “Mas eu estou falando de inquilino de classe média pra cima”. Porque pra baixo, até hoje, por exemplo, em São Paulo, imóveis até R$ 50 mil o valor não paga IPTU. “Vocês estão isentos”.

CC: Ou seja, a maioria ampla da população.
LG:
Muito ampla. E tinha os cadernos, porque tudo isso foi simulado. “Onde é que você mora?”. “Rua tal, número tal”. Você ia lá e falava: “Não, a sua casa está isenta do IPTU”. Ou, então, a progressividade tinha sido pequenininha. A curva de alteração era: os isentos, depois os não isentos subia um pouquinho. Agora, para os bancos, meu amigo, triplicava. Em alguns casos quadruplicava o IPTU. E digo mais pra você, IPTU, na conta de um banco, é mais ou menos 0,0001% do custo, sei lá...
Bom, as dúvidas da população eram, sobretudo, essas. E, de fato, hoje à distância, o que eu vejo? É claro que o projeto tarifa zero poderia ter tido muito mais chance se o transporte estivesse melhor. Esse discurso “se está ruim pago, pior não pago” cola muito na cabeça das pessoas.

Eu entrei na secretaria de Transportes em junho de 1990. Em setembro de 1990, tinha que mandar a proposta orçamentária pra Câmara, é a data que expirava. Portanto, era ali ou passava o tempo. Hoje eu vejo porque pode não ter dado certo, embora ache muito difícil que um projeto desse passasse, porque realmente tudo teve que ter sido feito meio às carreiras.

Mas o entendimento que a Erundina teve, o que eu achei a grande genialidade dela, digamos assim, é que ela sacou que isso era uma proposta política, que era pra fazer um bruto debate na sociedade. Tanto isto é verdade que o projeto tarifa zero não foi votado, a reforma tributária não foi aprovada. Eles nem votaram a tarifa zero.

CC: Chegou a tramitar em comissões?
LG:
Tramitou. Teve pareceres favoráveis e desfavoráveis. Pois bem, em fevereiro de 1991 eu sou o primeiro secretário a me reunir com todos os líderes de partido da Câmara. Alguns secretários disseram: “É a primeira vez que estou pisando num gabinete de secretário do PT”. Porque o PT era odiado naquela época, não é o PT de hoje. PT era uma coisa esquisita. Abriu-se uma comissão de vereadores que o Chico Whitaker articulou, e nós fomos discutir o projeto de municipalização e escrevemos o projeto de municipalização a dez mãos. Com todos os líderes de partido. Com exceção do PCdoB. Porque o PCdoB era contra, era a favor da estatização. E o PSDB ficou rachado, um pessoal veio fazer comigo e um outro era contra. Posteriormente aprovaram o projeto. E isso permitiu a municipalização, que foi a grande virada. Pra você ter uma idéia, eu contei pra você que quando eu entrei a avaliação do sistema estava -40 ou -60. Quando terminou 1992 a avaliação do sistema foi +62.

A municipalização soterra a tarifa zero

CartaCapital: E com esse sucesso da municipalização, não era possível retornar à tarifa zero? LG: Eu acho que não.

CC: O projeto tarifa zero ficou soterrado para a sua geração?
LG:
Eu acho que sim, um projeto muito difícil, não é? Ele precisa de um momento político muito especial.

CC: Difícil pela questão política ou difícil pela aplicação?
LG:
Não, não. Fazer tarifa zero é bico, não tem mistério nenhum.

CC: Problema é derrubar tabu?
LG:
É, mas põe tabu nisso. E não é só tabu. Tarifa zero só existe com reforma tributária altamente progressiva. E aí, meu amigo, não é qualquer um...

CC: Aí mexe com interesses financeiros.
LG:
E hoje, então, com o discurso que se diz que no Brasil tem imposto demais. Situação política seria muito difícil. Na escala de São Paulo, então...

CC: Voltando à municipalização. No decorrer de 1991 a municipalização é implementada...
LG:
Durante 1991 a gente discute o projeto, aprova na Câmara, faz a concorrência pública, que é uma concorrência pública gigante, transforma todo sistema de concessão em sistema de serviço prestado e bota dois mil ônibus numa tacada. Primeira tacada, no dia 25 de janeiro, Dia da Cidade de São Paulo. Nós enfileiramos mil ônibus numa tacada só para entregar na cidade. Nós fizemos uma fila que começava na Praça da Bandeira e ia até além do aeroporto de Congonhas. Uma fila de mais ou menos 16 quilômetros de ônibus enfileirados um atrás do outro. Mudamos tudo. Acabamos com essa de cada empresa de ônibus ter uma cor – hoje algo consagrado, mas na minha época não era não. Os ônibus passaram a ter todos a mesma cor, com indicação de região através de um projeto visual. Teve todo um projeto de capricho.

CC: Antes disso, uma última questão sobre a tarifa zero. Chegou a existir algum movimento defendendo o projeto? Ligado ou não ao partido.
LG:
Teve. Existiram Núcleos Pró-Tarifa Zero, movimentos populares. Mas acontece o seguinte. Naquela época a participação popular estava muito vinculada ao PT. Hoje eu acho que ela se difundiu um pouco mais e também há muito apartidarismo. Naquele momento o PT tinha a hegemonia quase que absoluta. Alguns poucos movimentos não eram ligados. O PT não se mobilizou. Há alguns casos em que vereadores foram dizer: “Vocês têm que calar a boca porque vocês vão atrapalhar tudo”. Vereadores do PT. Eu sei de casos, por exemplo, que o Núcleo Pró-Tarifa Zero da Vila não sei das quantas, começou a panfletar, um vereador foi lá e mandou retirar aquele negócio. “Vocês estão loucos, o que é isso?”.

Mas eu acho que tem uma coisa, Daniel, que possivelmente explica isto, pra mim. É que o PT não era um partido revolucionário. Este é o ponto. Coisa que hoje fica de uma evidência muito clara. Não porque isto signifique uma condenação minha ao PT. Eu acho que o PT teve, tem e provavelmente terá um papel muito importante no Brasil. Não sou dos que estão torcendo contra. Mas, intrinsecamente, ele não era o partido revolucionário. Que é um partido revolucionário dentro da democracia? Ninguém está propondo aqui a ditadura de qualquer tipo. É obviar cada vez mais os limites que o capitalismo tem. O capitalismo tem limites próprios e um partido revolucionário tem que ficar evidenciando isso pra deixar claro que a luta tem que ser outra. Porque senão você cai numa armadilha que é insolúvel. A frase “o trabalhador tem que ganhar bastante pra pagar um ônibus de boa qualidade” revela, no meu modo de ver, não má vontade.

As experiências com a tarifa zero em outros locais

CartaCapital: Aqui em Florianópolis as empresas que exploram o serviço não passaram nem por licitação.
Lucio Gregori:
É, a tal delegação. Quando eu fui secretário os contratos estavam todos vencidos. Era tudo com permissão precária. Não dá, não tem como. Nos Estados Unidos é estatal, gente. E é fortemente subsidiado. E eu estava lembrando hoje, por exemplo, na Itália – só para dar alguns exemplos, depois eu volto à municipalização – como é o sistema? Você vai numa tabacaria e compra uma passagem de ônibus. No ônibus, logo na portinha quando você entra tem uma caixinha onde você valida aquele negócio, se quiser. E tem uma auditoria de quando em quando. E eu depois vi a estatística, é de 1/90. Eles fazem uma auditoria e pegam alguém que não validou. E aí tem uma multa.

CC: Na Alemanha também. Conheço gente que ia pra lá e não pagava...
LG:
Em Budapeste era assim, quando estive em Budapeste. Minha filha foi pega no terminal porque não tinha validado, por esquecimento. Isso significa o quê? É praticamente uma tarifa zero. Provavelmente o sistema não quer que ele tenha essa configuração porque evidencia um equívoco capitalista. Mas é praticamente. Arrecadação tarifária, na Itália, deve contribuir com uma merreca no custo do sistema.

Nos Estados Unidos o subsídio é de 40%, 50%. Na França chega a 90% e no Brasil você paga integralmente a passagem, com exceção do vale transporte, que é uma renúncia fiscal. Ninguém conta isso. Vale transporte é uma renúncia fiscal, portanto, é um subsídio sim. Só que pra empresa também. Não que não seja para o trabalhador. O desconto é no imposto de renda. E conta como despesa operacional, quando não é. E é limitada, como se diz, Casa Grande & Senzala, é serviço-trabalho-trabalho-serviço. Trabalho-casa-casa-trabalho e ponto. Como se você vivesse numa cidade indo pro trabalho e do trabalho pra casa. Você não tem mais mobilidade.

Existem uma série de argumentos utilizados pelos que não concordam com a tarifa zero. Mas há uma questão que dificilmente será discutida de forma aberta, que é a possibilidade das pessoas pobres poderem se locomover por todos os lugares, lugares que são reservados aos ricos. Por exemplo, existem praias em Florianópolis sem acesso razoável, senão de carro. Então com a tarifa zero o sujeito vai ter este acesso.
Isso muda tudo.

CC: Tem praias aqui que não tem ônibus. Aliás, tem...
LG:
Eu imagino. Tem um ônibus de manhã e um de tarde.

CC: Isso, pra levar e trazer empregados.
LG:
Onde eu moro, um loteamento aberto, não chega a esse nível, mas tem dois, três ônibus durante o dia para, sobretudo para os serviçais. É uma forma de você segregar. Isso é impressionante, não dá nem pra imaginar. Será que não discutir a tarifa zero não é a permanência da subalternidade? É o medo de superar pra valer a subalternidade? Porque subalternidade não passa só pelo fato de você ser empregado, passa por tudo isso.

Então, voltando à pergunta sobre a municipalização, porque eu acho muito interessante. Maluf e Pitta não mudaram, por questões puramente operacionais. E segundo, porque a municipalização isoladamente é como qualquer contrato da prefeitura. Como uma empreiteira, um viaduto. Você contrata, paga e pronto. Mas também você pode não pagar, sacanear para pagar. Ou você pode pagar menos e ficar devendo. Todas as safadezas típicas que você pode fazer quando se é Poder Executivo no Brasil.

Após três governos, o próprio PT acaba com a municipalização

CartaCapital: A tarifa zero era uma concepção política.
Lucio Gregori:
Uma concepção política profunda, capitalista. Não é revolucionária. Erundina, naquele momento, era revolucionária. Muitos outros eram também. E outros não são revolucionários nesse sentido. Eles, os ditos revolucionários. querem promover uma revolução democrática dentro do sistema capitalista. Ou, pelo menos, levar a ficar óbvio que o capitalismo tem limitações. Hoje, vendo debates, com 15, 16 anos de distância, pra mim isso fica de uma clareza, fica até chocante. Como é que eu me dispus a peitar essa discussão. Eu comentava isso com minha mulher. “Heloísa, eu estava doido”. Porque é uma tarefa incrível.

Mas era um momento muito peculiar. Eu acho que a maioria das pessoas que se dizem revolucionárias não são. E eu acho que também não sou, é bom deixar claro. Mas eu gosto de provocar um pouco essa evidência da sandice, eu acho que isso é uma coisa importante. E o capitalismo é coalhado disso.
Agora, uma coisa é verdade, Daniel. Maluf não mudou a municipalização. É claro que não fez a tarifa zero. Pitta não mudou a municipalização. Sabe quem mudou a municipalização e voltou ao regime de concessão? Marta Suplicy, do PT.

CC: Por que ela fez isso?
LG:
Porque eu acho que as pessoas não estão a fim de criar problema. Elas estão a fim de conquistar e exercitar o poder. E isso aí às vezes atrapalha sua carreira política. Se você está pensando em termos de carreira ascendente pessoal.

CC: Quando ela modificou não teve choque, discussão sobre isso?
LG:
Não, foi aprovado por unanimidade pela bancada do PT.

CC: Tinha argumentação política pra isso ou foi: “Acho que é melhor assim e deu”? Porque se Maluf e Pitta não mudaram...
LG:
Maluf e Pitta não mudaram por uma outra razão.

CC: Qual?
LG:
Eles chegaram à conclusão que aquele sistema estava bom. “Por que eu vou mexer?”. Que bobagem.

CC:Exatamente. Se eles achavam que era razoável, ou pelo menos não era desconfortável o suficiente para que eles tivessem que mexer, que tipo de problema o transporte gerava pro PT da Marta?
LG:
Por causa do seguinte. A municipalização – não estamos mais na tarifa zero, porque a tarifa zero é outro salto de qualidade...

CC: Que foi sepultado.
LG:
Foi sepultado até que renasça, nunca sei. Eu confio muito nisso que o Movimento Passe Livre está fazendo. Por isso que estou falando do projeto tarifa zero, não é à toa. Mas não porque acho que o movimento poderá implantar a tarifa zero, mas acho que vale a pena essa discussão, ela é fundamental. Ou então essa sociedade não muda muito. Não muda. Eu acho que o transporte urbano é de um simbolismo tão forte, que se ele continuar sendo como é no Brasil, concessão tarifária com empresa concessionária privada, não vai mudar muita coisa.

Os problemas para fiscalizar o transporte público

CartaCapital: E como era a fiscalização para ver se as empresas estavam cumprindo o que era determinado?
Lucio Gregori
: Ah, muito fácil. Isso também foi um Febeapá. Febeapá é um termo: Festival de Besteira que Assola o País. Isso era uma figura usada por um grande humorista brasileiro chamado Stanislaw Ponte Preta. Ele falava do Febeapá e do samba do crioulo doido. Ele que inventou o termo samba do crioulo doido. Na época era muito fácil. Hoje, então, com GPS , processamento de dados...

CC: Em Florianópolis as próprias empresas fazem o controle de dados. A prefeitura só os recebe depois.
LG:
Aí é piada. Aí, como dizem, é pornografia.

CC: A planilha não é pública, embora seja divulgada aos membros do Conselho Municipal dos Transportes. A forma de coleta de dados, notas fiscais de fornecedores, ainda não é pública.
LG:
Em São Paulo estávamos um pouco além. A planilha tinha sido discutida no Conselho Tarifário. Tinha representante de todos os lados. A estatística de passageiros era a CMTC que fazia. Depois disso a arrecadação de tarifa era feita para a prefeitura, controlada. E os sistemas de controle poderiam ser vários.
Mas na nossa época era simples. Você tinha uma fiscalização de garagem. Você tinha ‘x’ fiscais que ficavam nas garagens. Você tem a planilha de saída de horários previstos de acordo com o serviço. Ficavam lá registrando, nuns apontadores digitais da época. Aí você via: “Saíram todos os ônibus da garagem conforme previsto nos horários confirmados”.

Agora, você pode ter uma outra situação: ele deu uma volta no quarteirão, entrou e virou. Não deu, porque o fiscal está lá. Ou ele ficou numa rua parado na esquina e no fim do dia ele voltou e o fiscal disse: “Ah, ele saiu e ele voltou”. Mas o que acontece. Nós tínhamos feito um trabalho grande na CMTC que verificava os pontos de passagem das várias linhas de ônibus. Apesar delas serem várias, elas têm pontos de passagem obrigatórios. Não são muitos na cidade. Seriam acho que uns 200 pontos em São Paulo. Nesses pontos você tinha uma equipe de fiscais que controlava e anotava, por digitação, o número do ônibus e o horário que ele passou. No fim do dia você jogava isso tudo dentro de um computador e ele dizia: “O ônibus tal saiu, passou no ponto tal a tal hora”.

Como o projeto tinha sido muito bem bolado, o contratado (empresário) ganhava uma parte por quilômetro rodado e uma parte por passageiro transportado. E essa equação era feita de tal modo, linha por linha, tal que, se ele só rodasse a quilometragem e não transportasse ninguém, ele receberia 80% do custo do serviço, portanto iria à falência. Se ele transportasse mais passageiros do que era permitido, ele não recebia por cláusula contratual. Claro que você pode ter o fiscal corrupto. Mas aí está para se inventar um sistema que evite isso. Agora, hoje em dia, não sei nem se usa isso em São Paulo, você tem um chipzinho que é colocado no ônibus e através de uma central você controla tudo à distância. Dá pra chamar um tecnocrata de informática e ele fica alucinado. Com GPS dá pra dizer em que lugar o ônibus está, que hora que passou, como passou e deixou de passar. Mas Maluf não fez por causa disso, talvez ele tenha até sacaneado um pouco também, não sei.

CC: Talvez as empresas pudessem ter tido alguma margem...
LG:
Pra dar por fora, pra receber. É, pode ser. Então ele ficou confortável, falou: “Não vou mexer nessa trolha aqui, vou ter que fazer uma outra lei, meu deus do céu”. Agora, por que a Marta mudou? Eu acho que Marta mudou por causa de projeto de poder. Aliás, diga-se de passagem, a primeira municipalização feita foi a de Santo André, com o Celso Daniel. Eu devo muito ao então secretário de Transporte de lá. Porque eu ficava comendo na mão dele. “Como é que você está fazendo, como é que você remunera?”. Ele dava dicas. Celso Daniel, no segundo governo dele, cancelou a municipalização.

CC: Por quê?
LG:
Eu acho, como disse a você, que a situação “concessão regulada por tarifa” já é incorporada na cultura nacional. Pode ter uma sainha justa na hora dos reajustes. Mas como já se tinha chegado nas planilhas mais confiáveis, estatísticas mais confiáveis, a discussão [sobre democratização do transporte] ficava na margem.
O empresário, como agente racional na economia, vai tentar sempre otimizar seus lucros. Através das mais variadas sacanagens. E o poder público vai tentar o tempo todo minimizar o custo político dos aumentos tarifários. Essa tensão vai ser o tempo todo gerenciada desse jeito, mas é uma tradição que no Brasil vem pelo menos desde 1920, 1910. Ou até mais. Tem 100 anos disso e continua assim.

É um desgaste menor, pra quem quer um projeto político de manutenção de poder, ter algumas concessões do que peitar uma coisa como a municipalização, que vai exigir controle absoluto, pagamentos em dia. Vai te tirar flexibilidade e perspectiva de custos crescentes, porque o sujeito, o usuário, quer ter um pouquinho mais.

Então se ele passa a ter um transporte bom, um lugar mais folgado, ele quer um ônibus melhor. Depois ele quer um ônibus que não dê tranco, um ônibus automático, com ar-condicionado, entendeu? E a municipalização vai permitindo esse caminho todo. As discussões crescentes com a classe dominante, que de algum modo vai ter que pagar... Para um projeto de poder como o PT tem, hoje fica claro pra mim, é um bruto desgaste, não faz sentido.

Questionamentos políticos que projetos de tarifa zero sofrem

CartaCapital: E argumentos como: “Vai tirar verbas que vão pra educação. O povo vai perder creche”?
Lucio Gregori:
Há uma questão central na gratuidade. A gratuidade implica em custo. E isso tem que ser discutido. É claro que se você disser “estudante não paga”, logo vem um argumento assim: “É, mas então o usuário que paga está bancando o estudante. Não é justo”. E em parte isso pode ser verdadeiro, por isso que eu digo sempre: a questão do subsídio está diretamente ligada a duas coisas. A disputa de dinheiro entre setores da prefeitura. Você pode dizer: “Bem, eu vou gastar menos em asfalto de rua e vou gastar mais em transporte de gente”. Não precisa ser só a creche. Tem tanta coisa que você pode gastar menos. Eu vou fazer mais economia com sistema racional de iluminação para bancar isso. Ou vou fazer uma pequena reforma tributária para ter um dinheiro a mais para bancar isso também. Isso ninguém fala. Então, por isso que eu digo a você, a gratuidade – entendendo a gratuidade não como uma coisa de graça, mas paga indiretamente – coloca sempre discussões de fundo. Aí me perguntaram: mas nem nos regimes socialistas existiu.

CC: Porque não é pedagógico, é assistencialista...
LG:
É, olha, é um delírio. É uma coisa que eu estou para entender. Tem uma coisa muito forte na tarifa de ônibus. Repare bem, é na tarifa. Ela tem um poder simbólico, um emblema fortíssimo, arraigado, que eu me surpreendi, confesso a você. Eu fui até ingênuo, sob esse aspecto, quando “parti pro crime”, digamos assim. Eu imaginei que teria algumas dificuldades, mas não imaginei que seria uma coisa tão feroz. E teve ferocidades assim, graves. Eu me senti, em certos momentos, ofendido.

CC: Se você tivesse que explicar pra alguém o ponto mais importante para defender o transporte público e a tarifa zero... Qual é a linha de argumento central?
LG:
O direito de ir e vir, a liberdade de ir e vir. Esse é um negócio seriíssimo. Teoricamente, a liberdade de ir e vir. Eu acho fortíssimo. Sintetizando, é muito forte. E eu acho que é isso que pega. Se você desbastar isso, desbastar aquilo, você vai chegar aí. Na verdade, os dominantes não querem que os subalternos sejam iguais, essa é a verdade.

CC: Não podem freqüentar os mesmos lugares.
LG:
Não, não pode ir ao teatro. “Não pode andar junto de mim, ir aonde eu vou”. É muito forte isso.

CC: As pessoas vão descer do morro para conhecer a cidade, visitar família...
LG:
O que quiser, vale tudo. A pessoa sai desse impasse. E hoje, por exemplo, eu estava vendo, claro que isso varia com cidade, tem toda uma peculiaridade, eu vejo hoje que sem automóvel é difícil de viver. Em São Paulo é muito difícil, onde eu moro também é muito difícil. Porque nesses 45 anos de indústria automobilística, esta indústria também trabalhou pra isso acontecer. A cidade vai se conformando ao automóvel.


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