14 maio, 2006

Carta à Coordenação Nacional da Consulta Popular - Cesar Benjamim

Prezados companheiros:
Comecei a reconhecer-me como militante de esquerda em 1967. São quase quarenta anos. Quase todo o meu tempo de vida. Nos últimos meses, pela primeira vez, como alguns de vocês já sabem, tenho avaliado a possibilidade de me afastar, mesmo temporariamente. Tenho sentido a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos.

A causa é a grave inflexão por que passou a esquerda brasileira. Em sua história, ela já correu muitos riscos. Em alguns momentos foi quase eliminada fisicamente. Porém, mesmo em minoria, mesmo fora de governos, mesmo perseguida, mesmo errando, aqui e em outros países, sempre concebeu para si um papel de vanguarda intelectual e moral. Isso foi decisivo para a sua auto-estima e sua sobrevivência, geração após geração.

A situação, agora, é inversa: sem saber como enfrentar um processo inédito – a dissolução de dentro para fora –, a esquerda corre o risco sair da história, mesmo que continue a existir fisicamente. Pois só mantêm-se, como forças vivas, movimentos que têm idéias e utopias.
Foi esse o patrimônio que perdemos. Vocês são testemunhas de que paguei alto preço para tentar preservá-lo.
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“Se Deus não existe”, dizia Dostoiévski, “tudo é possível”. Nos últimos anos, gradativamente, tudo foi se tornando possível, com a cumplicidade de muitos, até que chegamos ao fundo do poço.
Hoje, bancos e empreiteiras fazem repasses milionários, regularmente, para o maior partido da esquerda brasileira, que passou a depender desses recursos para sobreviver. Importantes dirigentes atuam abertamente como lobistas de grandes empresas. Outros recorrem à Justiça para obter garantia do direito a mentir. O mais poderoso ministro do governo de esquerda, no exercício do cargo, prostituía meninas. A militância é vista como uma forma de ascensão social.
Há trinta anos, isso seria impensável. Há vinte anos, estaríamos diante de escândalos. Há dez anos, seriam motivos de inquietação e debate. Hoje são apenas fatos da vida. A traição perdeu a modéstia, e a esquerda passou para a retaguarda intelectual e moral da sociedade, uma grave inflexão.

Eu não sou desse tempo. E tenho memória. Por isso, retirei-me há mais de dez anos do PT e estou reavaliando caminhos.

Mas a vida é tinhosa. Justo nesse contexto de recolhimento, tristeza e reflexão recebi o convite inesperado, que agora vamos debater. Devemos debatê-lo com o coração aberto, pensando grande.
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O estatuto de um povo, diante da história, não se resume ao que ele é em um dado momento. Define-se mais pelo que ele quer ser. Por seu horizonte de expectativas. Pois isso é que o coloca em movimento. É aí – e não na política econômica – que está o x da questão, quando avaliamos Lula e o PT.

Lula rebaixa sistematicamente o horizonte político e cultural do povo brasileiro, e precisa desse rebaixamento para se manter no poder. Pois só um povo mediocrizado aceita entregar sua consciência pelo medo de perder uma bolsa-família de, em média, R$ 60,00. Um povo culto e organizado, ou em processo de aprendizado e organização, conhecedor de seu próprio potencial humano, exigiria muito mais.

Por deseducar o povo, por desprepará-lo para construir o futuro – e não, basicamente, pelo nível da taxa de juros –, é que Lula e o PT são nocivos. Quando forem derrotados – neste ano ou daqui a quatro anos, não importa –, se a esquerda tiver continuado a ser cúmplice deles, não ficará pedra sobre pedra. É o grave risco que corremos, e que vocês subestimam.
Passada essa aventura, perdidos cargos e verbas – neste ano ou daqui a quatro anos, repito –, não teremos nem um povo mais consciente, nem quadros mais preparados para prosseguir a luta, nem uma juventude mais mobilizada, nem instituições republicanas mais avançadas.
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Sem idéias a serem multiplicadas, sem exemplos a serem seguidos, sem coerência a ser cultivada, sem passado a ser lembrado, o lulismo já agoniza em praça pública. Não falo de Ibope, falo de História. Mas ele tem na reeleição – ou seja, no manejo de cargos e verbas por mais quatro anos – a possibilidade de prolongar sua agonia. A dúvida se resume à forma e ao ritmo da derrocada, bem como ao tamanho do estrago, já enorme, que deixará. Seja como for, não há mais futuro nele.

Dizia Marx, na Ideologia alemã, que a fórmula da ideologia havia sido dada por Cristo na cruz: “Eles não sabem o que fazem.” A milenar fórmula envelheceu. Pois eles sabem o que fazem e, assim mesmo, fazem.

Se Lula obtiver mais um mandato presidencial, tudo poderá acontecer. Quem ignora que ele já se tornou um político autônomo em relação aos movimentos sociais e ao próprio PT? Quem conhece seus compromissos? Que podres ainda não vieram à luz? Quem poderá dizer, sem hipocrisia, que foi surpreendido e traído por qualquer decisão que venha a ser adotada?
É preciso, pois, que a Consulta Popular diga claramente, desde já: não em nosso nome. Não com a nossa omissão. Mas a Consulta Popular hesita, talvez para deixar abertos os espaços aos que ainda desejam flertar com o lulismo.
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Quando escrevi o texto “Decifra-me ou te devoro: a Consulta Popular e as eleições de 2006”, em janeiro deste ano, para o nosso debate interno, a possibilidade que agora discutimos ainda não fora aventada. Ali eu defendia o apoio à senadora Heloísa Helena, reconhecendo que sua candidatura padecia de limitações, que se estendiam ao seu partido, o PSOL.

Não recuo de nenhuma das minhas observações, e isso nunca foi sequer sugerido pelo PSOL, que mostrou grandeza. Pergunto-me, porém, se devemos usar as críticas aos outros para desqualificá-los, ou se devemos estar junto com eles, todos em boa-fé, em uma luta que é comum.

É verdade, a Consulta Popular tem méritos: não se organizou segundo o calendário eleitoral, mobilizou-se para produzir idéias, tem realizado um esforço sério de formação de quadros.

Não temos, porém, o monopólio da virtude.

Por que não reconhecemos que a legalização do PSOL, com a coleta, nas ruas, de mais de 500 mil assinaturas, sem esquemas tradicionais, sem cabos eleitorais remunerados e sem corrupção, também resultou de um sério esforço militante?

Por que não admitimos que a existência de um partido de esquerda apto a disputar eleições presidenciais, embora não coincida exatamente com o caminho que escolhemos, abre uma alternativa a mais para a nossa própria luta?

Por que não pensamos como complementares, em vez de concorrentes, as diversas iniciativas renovadoras em curso dentro de uma esquerda em crise e cheia de incertezas?

Por que fechamos os olhos para o fato de que, na débâcle do petismo, a senadora Heloísa Helena e outros parlamentares optaram por não trair suas histórias de vida, recusaram o comodismo, aceitaram riscos e, por isso, são legitimamente reconhecidos como lutadores por uma parcela do nosso povo?

Por outro lado, não tem também a Consulta Popular as suas fraquezas? Uma delas – e não a menor – não será justamente a incapacidade de tomar decisões políticas coerentes com as análises que faz? Não é verdade que muitos movimentos sociais ainda se abrigam no guarda-chuva do lulismo e cultivam ambigüidades?

De que serve formar quadros, se em seguida recomendamos que se omitam?

De que serve lutarmos corajosamente na frente social, se somos covardes na luta política?

De que serve cultivar valores, se nos curvamos aos que praticam antivalores?

As perguntas poderiam se multiplicar.
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Queiramos ou não, o fato político mais importante no Brasil, neste ano, serão as eleições presidenciais. Se a disputa ficar resumida a PT versus PSDB, haverá um só projeto colocado na mesa. E o debate se limitará, fundamentalmente, a duas questões: Quem roubou mais? Quem foi mais medíocre na condução do país?

O Brasil não merece isso.

Desde o início de seu governo, Lula fortaleceu a direta. Agora pede o nosso apoio porque a direta está forte. Mas, quem disse ao povo brasileiro que as posições da esquerda, nos últimos vinte anos, eram apenas bravatas? Quem reafirmou o neoliberalismo como única alternativa e deu novo fôlego a ele, quando o povo já o rejeitava? Quem descumpriu todos os seus compromissos? Quem colocou quadros da direita em postos-chaves do Estado? Quem compôs sua base com o rebotalho da política conservadora? Quem reafirmou os métodos da direita, inclusive a corrupção, espalhando descrença e cinismo, em vez de esperança? Quem liberou os transgênicos e sacramentou o latifúndio monocultor como modelo para o mundo rural brasileiro?

Também aqui as perguntas poderiam continuar. Basta, porém, afirmar claramente: não somos nós – nem é o PSOL – os responsáveis pelo fortalecimento da direita. O responsável é Lula.
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O convite que recebi é especialmente honroso, porque inesperado e inusual. Não lidero nenhum grupo, não tenho votos ou esquemas, nunca me candidatei a cargo eletivo, não freqüento regularmente as páginas da grande imprensa, não sou nem quero ser celebridade. Nunca pleiteei um convite assim, que é, em geral, tão disputado. Como os demais militantes da Consulta, sou uma espécie de antítese do político profissional.

Ao me deparar com essa possibilidade, recolhi-me para refletir, pois a decisão sobre ela tem variadas dimensões, algumas de caráter estritamente pessoal. Disse logo, porém, que me sentia honrado e sensibilizado. Estava sendo sincero.

Pela minha desimportância no processo político brasileiro, o gesto da direção do PSOL, que não vem acompanhado de nenhuma exigência descabida, contém uma dimensão de confiança pessoal maior do que aquela que tenho recebido na própria Consulta, onde muitas vezes sinto-me incômodo.

Não recusei a possibilidade aberta pelo PSOL, mas tampouco me deslumbrei com ela. Hoje, depois de um período de reflexão, disponho-me a aceitá-la.

Debaterei com vocês com o coração aberto, mas exigirei de todos, exatamente, o mesmo coração aberto. Não me deixarei impressionar por rancores, não serei levado por preconceitos e sectarismos, não aceitarei razões menores. E, em última análise, a decisão será minha, pelos aspectos pessoais que comporta.
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Não é a luta interna de grupos que está em jogo, e muito menos uma carreira pessoal, que nunca desejei construir. É a possibilidade de, nos próximos meses, dialogar com milhares de pessoas sobre os destinos do Brasil. Difundir idéias.

Espalhar esperança. Submeter nossas propostas ao debate público. Contribuir para o diálogo dentro da esquerda. E conferir, à nossa ação, uma meta-síntese: mobilizar e organizar, difundir o projeto popular, ajudando a consolidar, assim, uma organização mais permanente.

Ao refletir, busquei identificar qual seria a posição mais coerente com as nossas análises: o ciclo PT terminou; a esquerda social precisa romper os limites da ação reivindicatória e propor um projeto nacional; devemos encontrar uma meta-síntese para o período. E assim por diante.
No texto escrito em janeiro eu convocava a Consulta a esforçar-se para ajudar a formar uma frente antineoliberal no Brasil e identificava a candidatura de Heloísa Helena como portadora do maior potencial para isso. A história, inesperadamente, agora nos dá a chance de ocupar uma posição relativamente central nesse projeto. Eis o dado novo. Foi esta a mais surpreendente conclusão a que cheguei, e a mais importante. Ao aceitar o convite, serei apenas um instrumento desse projeto, e não o melhor instrumento. Todos sabem, há muito tempo, que considero que a Consulta Popular tem quadros mais capacitados para isso. Mais representativos. Situados em posição mais central na luta política. Mais hábeis na comunicação com o povo. Disse isso diversas vezes, em contextos em que a sinceridade dessa afirmação não podia ser questionada.

Neste momento, porém, por circunstâncias da vida, a tarefa apresentou-se a mim, por causa de um gesto de solidariedade, feito no ano passado, com a luta do PSOL para legalizar-se. O que foi, na época, apenas um ato formal – assinar uma ficha, dentro do espírito da chamada “filiação democrática”, que não impunha deveres militantes no novo partido – abriu, neste momento, possibilidades insuspeitadas.

É claro que sou grato ao PSOL e, em qualquer caso, estabelecerei com ele, bem como com seus aliados, uma relação de lealdade. Mas todos sabem que não sou um militante do PSOL.
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Eu convido a Consulta Popular a dividir comigo essa responsabilidade. A possibilidade de vitória eleitoral praticamente inexiste, mas uma vitória política está ao alcance da mão. Se a crítica ao neoliberalismo for ouvida por muitos, se uma esquerda em via de renovar-se obtiver um apoio razoavelmente expressivo do povo brasileiro, se milhares de pessoas – especialmente, jovens e pobres – se organizarem nos próximos meses para uma ação especificamente política e se uma parte, ao menos, dessa mobilização prosseguir e se consolidar – se isso acontecer, terá valido a pena.

Para os que, de boa-fé, consideram que Lula pode ser atraído para posições mais progressistas – esta não é a minha opinião –, digo que a melhor maneira de obter esse resultado é contribuir para que uma chapa de esquerda tenha expressiva votação no primeiro turno das eleições presidenciais, tornando-se assim interlocutora obrigatória de um futuro governo.

A sociedade poderá nos impor a alternativa Lula-Alckmin em um segundo turno, e nesse caso teremos de debater o que fazer. Será legítima – embora não necessariamente correta – a posição do voto no mal menor. Mas é ilegítimo – e não apenas incorreto – que nós mesmos, desde já, ajudemos a construir esse cenário, ajoelhando-nos diante dos grandes partidos comprometidos com o status quo e abrindo mão da nossa identidade.

Neste caso, transformados em cúmplices da traição, não teremos autoridade moral para reagir à derrota que virá depois. A médio prazo, será um golpe fatal para os movimentos sociais e a Consulta Popular.

Sinceramente,

Cesar Benjamin
Rio de Janeiro, 26 de abril de 2006


PS: Tenho discordância da forma com que o nome do Cesar foi indicado pra ser indicado, mas esse texto é muito bom.


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