08 maio, 2006

Se o petróleo um dia foi nosso, o gás é deles - Em defesa do decreto da nacionalização boliviana

Se o petróleo um dia foi nosso, o gás é deles
Em defesa do decreto da nacionalização boliviana


Soberania nacional, nossa ou alheia, não é coisa que se negocie. Os bolivianos têm direito aos seus recursos naturais. Uma verdadeira integração latino-americana só será possível com respeito à auto-determinação dos demais povos da região.


Ana Carvalhaes,

jornalista, militante do PSOL/RJ e membro da Coordenação Nacional do Coletivo Socialismo e Liberdade


Heitor Pereira Alves Filho,

geólogo da Petrobrás, diretor do Sindpetro/AL-SE, presidente do PSOL-SE e membro da Coordenação Nacional do Coletivo Socialismo e Liberdade



O gesto de Evo Morales do dia 1º de maio, ao assinar o decreto que regulamentou a Lei dos Hidrocarburos (Hidrocarbonetos), votada em maio de 2005 pelo Congresso boliviano, e mandar as forças armadas ocuparem as instalações de produção e refino do país, foi feito no dia e na forma certa para dar resposta ao grande clamor popular pela retomada das riquezas minerais e energéticas há décadas espoliadas pelas empresas estrangeiras, e influir no debate eleitoral para escolha dos deputados constituintes, que deverão ser eleitos em julho.

De quebra, a medida pôs na parede a direita pró-imperialista e autonomista de Santa Cruz de la Sierra. Essa burguesia regional, beneficiada pelo agribussiness do algodão, cana e soja, e pelo petróleo, não teria a menor dúvida em dividir o pequeno país para continuar se alimentando das migalhas do sub-imperialismo brasileiro.

De qualquer forma, e antes de qualquer análise sobre o conteúdo ou limites do decreto, a medida do governo Evo foi muito progressiva. Embora não tenha se tratado de uma nacionalização total, sem indenização, como fizeram a Argélia em 1963, o Irã em 1951 e a própria Bolívia de 1969 (com expropriação e controle total pelo estado nacional), o decreto é uma medida frontalmente anti-neoliberal. Tudo o que vá no sentido de questionar os lucros excessivos da múltis e retomar algum controle sobre recursos naturais estratégicos, reafirmando a soberania estatal de um país semicolonial, paupérrimo – e ainda por cima cumprir um compromisso eleitoral! – numa etapa de enorme ofensiva econômica, política e militar do imperialismo, tem que ser vista como positiva.

Vale destacar que a pequena Bolívia está fazendo essa inflexão anti-neoliberal, retomando pelo menos parte do controle sobre o que é dela, no exato momento em que a cúpula da Casa Branca dá claros sinais de que quer invadir o Irã, não por acaso um dos donos das maiores reservas de petróleo do mundo, junto com o Iraque, sem falar que está pondo em marcha a chamada “Bolsa do Petróleo”, para negociar o mesmo em euros


Os limites do decreto


Isto posto, vamos ver o que é o decreto do Evo:

A Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, ou YPFB (a tradução é Jazidas Petrolíferas Estatais Bolivianas, vejam só), que já tinha sido uma empresa totalmente estatal, como foi a Petrobras até FHC, foi retalhada e entregue a 20 multinacionais petroleiras de todo o mundo entre 1995 e 1997, transformando-se num escritório de cobrança de impostos. Foi mais ou menos como se a pujante Petrobras tivesse, por decreto, se reduzido a uma...ANP (a “brasileira”Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), um órgão estatal encarregado de organizar a entrega das riquezas do subsolo brasileiro e fiscalizar as regras do jogo de modo a garantir os interesses das multinacionais, as aves de rapina.

Enquanto via suas reservas de gás (a segunda da América Latina depois da Venezuela) repartidas entre os abutres (nota 1), o povo boliviano – ah, o povo boliviano – continuava sem saber o que era gás encanado e veicular para cozinhar, se aquecer ou viajar. A Bolívia, lembremos, é um dos países mais pobres do continente, tem mais de 60% da população abaixo da linha de pobreza e tem no gás natural seu principal recurso.

O decreto de 1º de Maio cumpre três determinações da Lei de Hidrocarburos, resultado direto das insurreições que derrubaram Gony Sánchez de Lozada em 2003 e Carlos Mesa em 2005. Evo não inventou a roda, mas acrescentou uma outra medida, que afeta diretamente a maior das petroleiras estrangeiras no país, a hoje multinacional Petrobras. O Decreto determina o seguinte:

(1) Ressuscita-se a estatal YPFB;

(2) Todos os consórcios resultantes da privatização de YPFB (Andina SA, Chaco SA e Transredes, esta última sócia do Gasbol junto com a Petrobras), mais a companhia armazenadora CLHB, devem vender ações ao estado boliviano para que este passe a ter 50% + 1, portanto o controle acionário dessas empresas. As ações da velha YPFB que foram pulverizadas e eram “do povo boliviano” mas geridas por fundos de pensão estrangeiros voltam para a YPFB. (Mas atenção: não está claro como será essa venda das ações, o que é importante porque por daí vem a indenização do estado boliviano às companhias);

(3) A produção de gás e óleo cru das petroleiras passa a ser controlada pela YPFB, que volta, assim, a decidir sobre como vende, transporta, armazena, exporta, quanto cobra e quanto vende (decisões estratégicas para qualquer país, das quais o povo e o governo da Bolívia estavam alijados desde a privatização de 1995-97). Isso quer dizer que a YPFB passa a ser dona da Petrobras e da Repsol na Bolívia, por exemplo, ou seja, é claramente uma expropriação pelo menos parcial? Não. Parece ser um expediente político-contábil. A Petrobras, a Repsol e demais sócias internacionais na espoliação da Bolívia continuam produzindo, mas quem vai tomar as decisões de gestão e se apropriar dos resultados contábeis é a YPFB. Como diz o próprio Evo, “elas vão lucrar, mas lucrar menos”. Economicamente, é uma espécie de “transferência de lucros” para o Estado. Politicamente, é uma nacionalização “pela metade”, como já caracterizou a direção da Central Obrera Boliviana, a COB.

(4) Aumenta de 50% para 82% do valor da produção as participações/taxas (royalties e o imposto sobre hidrocarbonetos) a serem pagas pelos megacampos de gás natural de San Alberto e San Antonio (de propriedade da Petrobras). Nas contas do governo boliviano, isso significa elevar a arrecadação no setor de 450 milhões de dólares anuais para 750 milhões, o que é uma maneira de reduzir a superexploração do país.

Portanto, o decreto é altamente positivo, mas não é uma nacionalização completa, sem indenização. Tanto que no dia seguinte à medida, Evo e seu staff saíram esclarecendo que querem muito negociar com o Brasil (controlador da poderosa Petrobras) e a Espanha (controladora da Repsol-YPF), que o que querem é discutir preços justos etc. E mesmo deixando de lado qualquer apreciação sobre quais seriam os limites político-ideológicos do governo boliviano, não se deve esquecer que o país tem um “pequeno problema”: são ricos em gás, mas não em petróleo.

Ao contrário do óleo, que pode ser produzido e estocado e tem a vantagem de ser líquido, portanto de transporte mais fácil, o gás natural só se torna riqueza (como falam no jargão do setor, só se “monetiza”, vira moeda ou dinheiro) quando há um gasoduto, de construção caríssima, uma demanda já formada lá na ponta e os contratos de fornecimento assinados. Não dá para estocar gás, a não ser por processo criogênico (torna-lo líquido por congelamento), atualmente caríssimo o que o torna inviável econômicamente, nem mudar rapidamente o destino das exportações do produto. Por falta de gasoduto e de demanda formada, a Petrobras, há anos, queima o gás ou o reinjeta nos poços da Bacia de Campos e da Bacia do Solimões, em Urucu, no Amazonas, além de outras bacias.

O mercado brasileiro de gás, particularmente o parque industrial de São Paulo e do Sul do país, é fundamental para a Bolívia, assim como a Bolívia tornou-se essencial para mover a máquina da indústria brasileira. Um depende do outro: 50% do gás consumido no Brasil é boliviano e 75% do gás consumido pelas indústrias de SP vêm da Bolívia (concentrado em cerca de 30 grandes empresas, dos ramos petroquímico, siderúrgico, fertilizantes e cerâmico, segundo a Folha de 3/5/2006). Graças ao gás, 40% das exportações da Bolívia são para o Brasil.

Petrobras lucra às custas dos recursos naturais alheios

Nessa interdependência – imposta pelo imperialismo maior, como explicamos abaixo –, é difícil afirmar quem “depende” mais de quem, econômica e geopoliticamente. Mas é fácil perceber quem explora quem e quem domina politicamente. Além de pagar preços baixos pelo gás da Bolívia, a Petrobras, ainda controlada pelo Estado brasileiro, foi das maiores beneficiárias da “liquidação” geral que significou o processo de privatizações da YPFB. De tal forma que em menos de 10 anos, partindo de nada, a Petrobras passou a ter na Bolívia propriedades que produzem 15% do PIB boliviano!

A Petrobras investiu US$ 2 bilhões para construir o Gasbol (Gasoduto Brasil-Bolívia) e gastou US$ 1,5 bi entre compras de ativos bolivianos (unidades de produção, duas grandes refinarias e centenas de postos de combustíveis) e investimentos para produção nos dois campos de gás que controla (San Alberto e San Antonio, os maiores do vizinho).

Esses montantes, dito seja, são irrisórios diante do valor dos ativos que foram arrematados. Para se ter uma idéia, as duas refinarias que a estatal brasileira comprou no país vizinho em 1999, custaram U$ 102 milhões, enquanto a construção da nova refinaria projetada para Suape, Pernambuco, vai custar às sócias Petrobras e PDVSA cerca de US$ 2 bilhões, sozinha. (Ou seja, Suape vai custar 20 vezes o que a Petrobras gastou para levar as duas refinarias bolivianas.)

Como se vê, os governos neoliberais da Bolívia venderam suas riquezas a preço de banana, e os governos de mesma índole do lado de cá da fronteira fizeram a Petrobras aproveitar a “festa”. Mas o dinheiro agora “perdido” (que deixará de ser arrancado do povo da Bolívia) pesa nas contas da estatal brasileira, com uma gestão muito mais voltada para Wall Street do que para os “interesses nacionais” que ela diz representar.

A Petrobras, recordemos, tem, desde o primeiro governo do PSDB – que pôs na sua presidência o banqueiro Reichstul – é gerida para satisfazer mais aos acionistas que ao povo brasileiro. A União ainda é controladora, porque tem 50% +1 das ações com direito a voto, as chamadas ações ordinárias ou ONs, mas detém apenas 35% do capital total da petroleira. Os outros 65%, notem bem, 65%!, estão nas mãos de investidores privados como o grupo siderúrgico Gerdau, a Vale do Rio Doce e o Bradesco, além dos acionistas estrangeiros, detentores dos títulos negociados na bolsa de Nova York.

Pese a esse “foco no mercado, eficiência e competividade internacional”, reafirmado pelas presidências petistas da companhia, contraditoriamente, a Petrobras tem seu orçamento incluído nas contas públicas e é obrigada a investir menos do que poderia e deveria para contribuir com os superávits primários astronômicos do governo Lula.

Como deveria atuar a Petrobras

A situação desenhada com o decreto boliviano revela com todas as cores o papel de exploradora que a Petrobras vem cumprindo na Bolívia, na Argentina, na Colômbia e todos os demais países semi-coloniais em que tem operações, seja de produção, refino ou distribuição de combustíveis. E joga holofotes sobre a condição de sub-imperialismo regional que o Brasil, suas empresas (privadas e estatais) e sua burguesia vêm desempenhando no continente, e no Cone Sul da América Latina em particular.

Semi-privatizada na era FHC com uma venda de capitais que tornou muitos investidores internacionais seus sócios diretos, a estatal brasileira joga para a tribuna de honra de Wall Street e da Bovespa, e não para colocar suas indiscutíveis expertise tecnológica e potência econômica a serviço de preços de combustíveis mais baixos para brasileiros, ou de uma integração latino-americana fraterna que respeite a soberania das repúblicas vizinhas.

Ora, não pode haver cooperação verdadeira baseada em condições comerciais desiguais – compra de gás boliviano a preços achatadíssimos – , políticas corporativas que não levam em conta as necessidades dos países onde atua – fazendo menos investimentos em exploração do que deveria na Argentina (o que é motivo de fortes protestos do governo Kirchner) – e em expedientes políticos de “autoridade”, levando o governo da Bolívia aos tribunais americanos, por exemplo.

A principal vantagem competitiva da Petrobras, como dizem no mercado (além do domínio sobre a tecnologia de extração de óleo e gás em águas profundas e ultraprofundas), é – que ironia! – justamente o fato de dominar de cabo a rabo a cadeia produtiva do setor. Ou seja, a vantagem de ser praticamente monopólica num mercado de porte razoável como o Brasil. É da combinação de seu poderio monopólico, eficiência tecnológica e altos preços do petróleo (que a empresa repassa sem dó ao bolso dos brasileiros) que vêm os lucros extraordinários da estatal.

Do alto dessa posição privilegiada e ainda controlada pela União, caberia à Petrobras atuar na pequena e pobre Bolívia como braço de um governo realmente aliado, tomando a iniciativa de oferecer aumentos ao preço do gás (reduzindo algo em sua astronômica margem de lucro), devolvendo San Alberto e San Antonio à YPFB ou indenizando o estado boliviano pela “pechincha” das compras de ativo no país com participações da YPFB no capital da Petrobrás.

A quem argumentar que se trata de utopia (até uma semana atrás, aliás, qualquer nacionalização também era vista como utopia...), recordemos o que fez recentemente a venezuelana PDVSA nos estados de Nova York, Nova Jersey, Massachussets e Vermont, na costa leste americana: a subsidiária de distribuição de gás controlada pela PDVSA forneceu o produto a preço simbólico para os bairros pobres de grandes cidades americanas da costa leste, para evitar que os trabalhadores – em grande medida latinos e negros – morressem de frio no último inverno. Uma jogada de mestre de Chávez, que com certeza não contou pontos para as ações da PDVSA na bolsa...

A função da Petrobras, sob o governo Lula e dirigida por professores e sindicalistas petroleiros petistas, deveria ser mais do que nunca a de contribuir política e tecnicamente para desenvolver a mais ampla soberania dos recursos energéticos dos países do continente. Talvez a “companhia”, como dizem os petroleiros, perdesse pontos no pregão da NYSE. Mas, ao fortalecer a fraternidade dos vizinhos com o Brasil, fortaleceria a posição do país, do governo Lula e sua própria situação nos mercados latino-americanos.


A encruzilhada do Brasil e do governo Lula


Lula e seu governo ficaram numa tremenda saia justa e vão atuar entre a cruz e a caldeirinha: a pressão do “mercado” ao qual aderiram e da mídia neoliberal, por um lado, e a consciência da incoveniência (e impossibilidade técnica e econômica) de romper com a Bolívia. Marco Aurélio Garcia, o ministro de fato das Relações Exteriores, disse à CBN, no dia seguinte ao decreto de Morales, que evidentemente sabiam que isso ia acontecer. “Se você me pergunta, Heródoto, se sabíamos que ia ser no 1o. de Maio às 15h, claro que não, daí o desconforto do presidente”, disse Garcia. “Mas que eles iam cumprir a lei votada pelo Congresso, isso era de se esperar”.

Nem com esse conhecimento prévio, o governo Lula deixou de tentar agradar seus amigos do mercado financeiro, investidores privados e mídia neoliberal, protagonizando o teatro de protestos, ações judiciais e “não vamos negociar preços” que a direção da Petrobras está encenando.

Não duvidemos: mesmo dividindo tarefas, dando tapinhas nas costas de Evo Morales, o governo vai atuar duro com a Bolívia. O que significa não só um ataque aos interesses dos trabalhadores e do povo bolivianos, como, essa sim, uma ameaça aos interesses do povo brasileiro. Afinal, não temos a menor condição, a médio prazo, de prescindir do gás da Bolívia, ao contrário do delírio xenófobo da direita mais raivosa.

A demanda (procura) por gás natural no Brasil cresce em ritmo chinês: 26% ao ano de 2000 a 2005 (a participação do gás no volume total de consumo energético no Brasil saltou de 1% na década de 80, para cerca de 9% em 2005, ver nota 2). A produção nacional não cresce nem de longe no mesmo compasso.

Aproveitar o gás de Urucu (Amazonas) ou dos megacampos da Bacia de Santos é economicamente inviável, diante dos grandes investimentos que já foram feitos para construir o Gasbol e distribuir esse gás (via canos da Comgás, lembremos, via canos) pela indústria paulista. Não por acaso, enquanto os ressentidos do PFL esbravejam pedindo retaliação à Bolívia (nota 2), a Fiesp está quietíssima, pedindo dureza na negociação, mas sem falar em rompimento, nem medidas retaliatórias, nem delírios de energia alternativa.

Além disso, a “nacionalização” de Evo chega também num momento político muito delicado para Lula, que tentava se recuperar das chamuscadas da crise do mensalão começando a campanha eleitoral às custas da auto-suficiência em petróleo, alcançada pela Petrobras e pelo país. Ora, ora, eis que a “opinião pública” descobre que, além de discutível em se tratando do petróleo, essa auto-suficiência tem um buraco enorme...


As trágicas ironias de um sub-imperialismo tupiniquim


Claro que não procedem as acusações da direita, em plena campanha presidencial, tentando atribuir a Lula e ao PT a “culpa” pelo conflito (por ter supostamente “substituído os interesses nacionais pela ideologia”, ou seja, por apoiarem mais a Evo Morales do que os lucros da Petrobras, no dizer do Sergio Abranches).

Também neste terreno, o PT e Lula não estão fazendo nada mais do que dar continuidade à obra dos governos anteriores, desde Sarney, que apoiaram entusiasticamente a construção do gasoduto contratado pelo General Geisel com o General Banzer nos idos da década de 70 e referendado em 1991 por Fernando Henrique, com o mesmo Banzer, na ocasião, de novo no poder do país vizinho.

Na verdade, o Gasoduto Bolívia-Brasil foi um projeto das múltis norte-americanas, carinhosamente acalentado e desenvolvido, desde os anos 60, pelo departamento de Estado do Império, em defesa daquelas corporações que lucrariam com a construção e mais tarde com o transporte do gás para o Brasil: as norte-americanas Enron, El Paso, a anglo-holandesa Shell e britânica British Petroleum (BP). Pois ninguém pode duvidar que o gasoduto é uma ligação entre os campos de gás bolivianos e o Oceano Atlântico, antes de mais nada.

O problema é que, no meio do caminho, ainda durante a construção do gasoduto, devido à instabilidade política na região e o tamanho reduzido dos negócios, as energéticas ianques reduziram seu interesse e abriram o vácuo que a Petrobras passou a ocupar, como sócia de outras múltis petrolíferas e de energia. A composição de capital da TBG (a parte brasileira da empresa do gasoduto, controlada pela Petrobras) e da GBT (parte boliviana) mostra bem o tamanho do imbróglio:

TBG(Braseileira

GTB(Boliviana

Sócios
%
Sócios
%
Gaspetro - Petrobras gas AS
51
Gaspetro - Petrobras gas AS9
BBPP Holdings LTDA
29
BBPP Holdings LTDA6
ENRON
7
ENRON
30
SHELL
7
SHELL
30
Fundos de Pensão Bolivianos
6
Fundos de Pensão Bolivianos25

Fonte:TBG

Na ponta da demanda pelo gás, dizem os especialistas, o crescimento assombroso do mercado brasileiro para o combustível – que está por trás também do “boom” da Petrobras na Bolívia – é resultado da falta de investimentos no setor elétrico. Ou seja, boa parte do gás vai e irá cada vez mais para usinas termelétricas (que geram eletricidade a partir de óleo combustível ou a partir de gás), que entraram no lugar das hidrelétricas que não se constróem mais. Coisas da anarquia capitalista...

Mas não deixam de ser de uma profunda e trágica ironia as imagens do Exército boliviano, executando uma medida nacionalista progressiva, amplamente apoiada pelos trabalhadores e povo da Bolívia, nas instalações sob a marca Petrobras – uma empresa nascida de outra das maiores lutas populares do século XX latino-americano (a campanha do Petróleo é Nosso), que teve um papel altamente progressivo para o desenvolvimento do país. A nossa Petrobras foi transformada em vilã da justa luta do povo boliviano graças ao vergonhoso papel de exploradores de segunda categoria que a ordem internacional imperialista reservou à burguesia e ao Estado brasileiros.


Uma campanha de apoio à nacionalização boliviana



A polêmica nacional desencadeada pela nacionalização boliviana e a chamada “crise do gás” constituem uma excelente oportunidade para os socialistas denunciarem esse papel lamentável do Brasil e da sua maior empresa. É preciso dizer com todas as letras que os bolivianos estão cobertos de razão, que se o petróleo foi e é em parte nosso, o gás é e será deles.

Nos cabe debater com os trabalhadores e o povo que a melhor saída econômica e política é reconhecer a soberania dos bolivianos sobre seus recursos naturais e seu direito à nacionalização e defender a nacionalização contra quem quer que seja. Que se houve “quebra de contrato”, como alardeia a direita, há contratos que têm que ser quebrados mesmo: como os escandalosos contratos da dívida externa que mantêm o Brasil e a América Latina atados à lógica dos superávits que sufocam o desenvolvimento do país e do continente.

Cabe à esquerda socialista, aos sindicatos combativos e ao movimento social brasileiros desmascarar essa “divisão de tarefas” levada a cabo pela cúpula petista: enquanto Lula dá tapinhas nas costas de Evo, Sérgio Gabrielli e a direção da Petrobras chantageiam com a ameaça de processar a Bolívia em tribunais bolivianos e internacionais.

Por isso, devemos também reivindicar que não exista nenhuma retaliação do governo Lula e da Petrobrás ao decreto do governo boliviano.

É preciso rechaçar essa política dúbia do governo, que diz reconhecer a nacionalização boliviana, enquanto a Petrobras endurece na negociação dos preços do gás. Embora não haja um preço internacional que seja parâmetro – como no caso do petróleo – e não nos caiba entrar na seara técnica de se vale US$ 5 ou US$ 8 o milhão de metros cúbicos, o certo é que os US$ 3,80 atuais são irrisórios. E os bolivianos têm o direito de pedir e receber o aumento.

Desenha-se, assim, uma oportunidade ímpar para os movimentos sociais das classes trabalhadores no Brasil, sindicatos, centrais e partidos da esquerda socialista fazerem uma ampla campanha em defesa da nacionalização do gás boliviano, com mais um e importante passo da luta dos povos latino-americanos por sua integração e repúdio à ordem neoliberal imperialista.

Notas:

1.A antiga YPFB foi dividida em três partes (Andina, Chaco e Transredes). Cada empresa foi destinada a um consórcio. Os participantes são as seguintes multinacionais: o capital da Andina é 50% da espanhola Repsol-YPF. A Chaco é 50% da Panamerican Energy (por sua vez com 60% da British Petroleum e 40% da argentina Bridas). A Transredes, dona de toda a infra-estrutura de transporte de óleo e gás, incluído o Gasoduto Bolívia-Brasil, tem 25% do capital nas mãos da Shell, 25% nas da americana Prisma Energy e 16% de sócios privados não identificados. Os fundos de pensão administrados por estrangeiros (um pela suíça Zurich Financial Serive, outro pelo Banco Bilbao Viscaya) ficaram, em nome de todos os bolivianos maiores de idade em 31/12/1995, com 48% da Andina, 48% da Chaco e 34% da Transredes.

2.O PFL representa o talvez único setor das oligarquias regionais que ficou absolutamente alijado da máquina estatal federal no governo Lula (máquina da qual os caciques pefelistas viviam mamando há cerca de 40 anos, desde os tempos da Arena, dominando por décadas as comunicações, a educação e a Petrobrás, via Ministério de Minas e Energia). Representam também, tal como comprova o senador baiano e ex-Ministro Rodolfo Tourinho, os interesses das petroleiras estrangeiras no Brasil e das empreiteiras prestadoras de serviço à indústria de petróleo e gás. Daí o empenho de Tourinho em aprovar uma nova Lei do Gás, que simplesmente rouba da Petrobras o controle sobre os gasodutos de todo o país.

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