10 dezembro, 2007

Bolívia: “O fascismo não passará”

Por Sue Iamamoto

10 de dezembro de 2007
Quinta feira passada houve uma marcha em Cochabamba. Entre 20 a 50 mil pessoas, campesinos, estudantes, professores, trabalhadores urbanos em geral. Muita gente, caminhando cada qual atrás da bandeira da sua entidade. Em marcha pacífica, saíram em defesa do governo Evo Morales, da democracia no país, pela nova Constituinte que deverá ser entregue no dia 14 de dezembro, contra a oligarquia da ¨meia lua¨ e contra o governador (que aqui eles chamam de prefecto) do departamento de Cochabamba, Manfred Reyes Villa.
Nós, brasileiros, não estamos muito acostumados com a direita organizada. Não sabemos direito que cara ela tem, como se manifesta. A direita para a gente se encarna mais nas páginas de revistas, em blogs de supostos intelectuais conservadores, mas nunca nas ruas. Mas uma rápida olhada em documentários como A batalha no Chile ou o mais recente A revolução não será televisionada basta para termos alguma noção do fascismo que pode alcançar a direita na América Latina. A direita boliviana é assim: morde, bate, lincha, queima. E, sendo a Bolívia o país dividido que é hoje, imaginem a tensão.
A oligarquia da meia lua
O fato político que deu contorno a esta divisão foi o referendo feito no ano passado acerca das autonomias departamentais. Os departamentos que votaram ¨sim¨ - Beni, Tarija, Pando e Santa Cruz – constituem a chamada ¨meia lua¨ e seus comitês cívicos e governadores são os maiores opositores do governo de Evo Morales. Eles formam o movimento autonomista, que, por detrás do bonito nome, esconde um racismo intenso contra os indígenas – materializados na figura do presidente – e ações de terrorismo contra os que discordam das suas opiniões. A fonte ideológica é a Nação Camba, movimento separatista que reivindica uma suposta herança cultural comum ¨camba¨ na região da meia lua, terras baixas que ocupam o oriente boliviano. Nada mais hipócrita, já que camba era o nome que os criollos usavam para chamar índios em trabalho de servidão nas suas fazendas – nome que é símbolo da dizimação cultural dos povos indígenas do oriente. O braço armado é a União Juvenil Cruceñista (UJC), que persegue os movimentos sociais nas ruas sempre que estes se manifestam. Vários dirigentes campesinos indígenas já foram mandados para o hospital graças aos bastões de basebol desta buena gente.
Do ponto de vista econômico, o movimento é razoavelmente fácil de entender. A oligarquia destas regiões é formada principalmente por latifundiários e empresariado e sempre esteve representada nos governos anteriores. Este setor não quer perder os privilégios que possuía antes do governo de Evo Morales e da perigosa participação que possuem os movimentos sociais neste. A sua proposta de autonomia departamental inclui controle dos recursos naturais existentes em seu território e controle da política agrária em nível local, tudo isso sem a participação do governo nacional.
É interessante notar que dentro do Comitê Cívico de Santa Cruz, principal porta-voz político deste movimento, constituem importantes forças dois atores sociais conhecidíssimos no Brasil: latifundiários brasileiros, enquanto setor produtivo da regiao de Santa Cruz, e a Petrobrás, enquanto membro da Camara de Hidricarbonetos.
Conflitos na Assembléia Constituinte
Como principal força de oposição ao governo, a atuação de representantes das terras orientais foi decisiva para a degradação política do processo constituinte que iniciou no ano passado. Estão majoritariamente representados pelo recém criado partido Podemos (Poder Democrático Social).
No conflito acerca da capitalidade, se posicionaram oportunamente a favor da reivindicação de Sucre de ser a capital plena da Bolívia. Atualmente, Sucre é a capital da Bolívia, mas só é sede do poder judiciário, os demais poderes estao sediados em La Paz. A reivindicação de Sucre foi retirada da pauta em votação dentre os constituintes. Isso causou uma grande revolta na população local, cujas movimentações inviabilizaram a continuidade da Constituinte por vários meses – já que ela estava sediada na própria cidade de Sucre. Depois de várias tentativas frustradas de estabelecer acordos, o setor do governo decidiu votar o texto constitucional “ou sim ou sim”, como disse o vice-presidente García Linera, e reabriu as sessões da Assembléia Constituinte em Sucre. Votaram o texto em geral no final do mês passado, mas a oposição se negou a participar da sessão. Em meio à votação destes textos, a cidade de Sucre convulsionou, um policial e dois jovens morreram nos conflitos.
Para garantir a estabilidade política, o governo transladou a Constituinte para Oruro, onde o texto em detalhe foi votado neste final de semana. Os constituintes têm até o dia 14 deste mês para apresentá-lo e, para ser aprovado, precisará passar por um referendo que deve acontecer no próximo ano.
Os constituintes da oposição mantêm o argumento de que o que foi aprovado é ilegal e que a continuidade da Constituinte nestes termos – translado de sede, falta de presença da oposição, etc. - também é ilegal. Paralelo a isso, os governadores da oposição atacaram o governo de anti-democrático e pediram uma intervencao das forças armadas, como foi formulado recentemente por Manfred Reyes Villa. Tudo isso divulgado e apoiado amplamente pela imprensa boliviana. E, para completar o cenário, começou a partir da intensificação deste conflito uma especulação com os produtos alimentícios de primeira necessidade por parte dos produtores agrícolas ligados aos interesses da meia lua.
A resposta dos movimentos sociais
Dado este cenário político, os movimentos sociais da Bolívia, em especial os indígenas campesinos que foram os primeiros a propor a constituinte, saíram às ruas nesta última quinta para defender as suas propostas presentes no texto geral e contra-atacar a ofensiva da direita. Em algumas regiões, principalmente onde havia uma presença massiva de manifestantes como em Cochabamba, os atos foram pacíficos. Em outras, como em Santa Cruz, os movimentos indígenas e campesinos foram acuados pela ação da UJC e algumas pessoas foram linchadas.
Muitos atribuem esta ofensiva da direita aos erros que o próprio MAS (Movimento ao Socialismo) cometeu nestes dois anos de governo. A maioria deles estaria na Lei de Convocatória da Constituinte e nos acordos feitos durante o processo que cediam demais à oposição. A estratégia formulada por García Linera de estabelecimento de um capitalismo andino, de um pacto social que incluísse os indígenas, mas que também contasse com o setor empresarial do oriente, teria causado um fortalecimento deste setor paralelo a uma razoável apatia dos movimentos sociais.
Para contrapor a crise política, Evo Morales anunciou uma proposta de referendo revogatório para ele e para todos os governadores da Bolívia na última quarta-feira, um dia antes dos atos regionais dos movimentos sociais acontecerem. Com isso, a marcha em Cochabamba ganhou uma nova palavra de ordem: “Referendo, tchau Manfred”, resgatando uma reivindicação do início deste ano de afastamento de Manfred Reyes Villa do poder em Cochabamba. Para uma trabalhadora da limpeza urbana da cidade – que não quis se identificar – a saída de Manfred era o principal motivo para participar da marcha. “Ele não gosta da gente, dos trabalhadores”, explicou.
Graciela Valdivieso, dona de casa, estava acompanhada de suas duas filhas e empunhava um cartaz em defesa da nova Constituição. “Agora estamos sofrendo certos conflitos com os movimentos de direita. São totalmente fascistas, neoliberais, radicais, e além de tudo tem tanta mentira, tanta covardia que não nos deixam prosperar. Essa nova reforma representa os pedidos das bases sociais, uma mudança total em Bolívia, uma transformação, uma nova Constituição Política do Estado (...). Me encanta participar em coisas justas, quando se trata do justo, do correto, como mãe, como mulher, como patriota, sempre participo e saio a reclamar meus direitos, os direitos da minha nação e os direitos da minha família”. A declaração de Graciela representa bem a base social que o governo de Morales tem em setores da classe média de Cochabamba.
Contudo, a presença massiva na marcha continuou sendo dos campesinos, em especial dos produtores da folha de coca. Eduardo Lima, secretário geral da Central Agrária de Chipiriri, filiada a Federação dos Trópicos, contou que somente da sua região vieram 600 pessoas. Os motivos da marcha eram principalmente a defesa do processo de mudança que o governo iniciou frente à ofensiva dos setores conservadores.
Presente também estava uma brigada de juventude anti-fascista. Referências aos golpes de estado feitos pela direita na segunda metade do século passado estavam implícitas, mas sempre em conjunto com um sonoro “O fascismo não passará!”. Omar Fernandez, dirigente dos Regantes e senador pelo MAS, lembrou que a especulação de alimentos foi uma tática da direita no Chile de Allende para desestabilizar seu governo. Propôs que o povo se organizasse para descobrir quem estava escondendo a comida e que estas pessoas fossem presas.
O ato em Cochabamba foi chamado pela COD (Central Obrera Departamental), que reúne trabalhadores do campo e da cidade, e faz parte de uma série de iniciativas que os movimentos sociais estão levantando para contrapor a ofensiva da direita neste momento delicadíssimo do cenário político boliviano. Para o próximo dia 13, convocaram uma cúpula de movimentos sociais na cidade. Trata-se de um momento central no país, no qual os movimentos sociais voltam a se movimentar em defesa de suas pautas e do processo de mudança e de combate ao neoliberalismo que impulsionam desde 2000, quando ocorreu a Guerra da Água.

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