16 dezembro, 2007

“Nossa tarefa agora é difundir a nova Constituição”

A direita boliviana está desesperada. Assim avalia Isaac Ávalos, uma das principais lideranças camponesas bolivianas. para ele, o papel dos movimentos sociais é informar o povo do conteúdo da nova Carta Magna

A direita boliviana está desesperada. Assim avalia Isaac Ávalos, uma das principais lideranças camponesas bolivianas. para ele, o papel dos movimentos sociais é informar o povo do conteúdo da nova Carta Magna


14/12/2007

Sue Iamamoto,

de La Paz (Bolívia)


Nos seus quase dois anos de existência, o governo de Evo Morales vive hoje um dos seus momentos mais delicados. A nova Constituição foi aprovada em meio a comemorações dos movimentos sociais e questionamentos da sua legalidade por parte da oposição (Leia reportagem). Organizada principalmente nos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Pando e Beni, a chamada oligarquia da "meia lua" já anunciou através de seus governadores e comitês cívicos que não reconhece o texto constitucional e que, neste final de semana, irá apresentar os seus estatutos autonômicos, que ameaçam dividir o país territorialmente.


Isaac Ávalos, secretário geral da principal organização campesina da Bolívia e grande sustentáculo social do governo de Evo Morales - a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos da Bolívia (CSUTCB) – coloca nesta entrevista a sua opinião sobre a conjuntura atual boliviana. Ele esclarece a relação que o seu movimento tem com o partido do governo, o MAS – IPSP (Movimento ao Socialismo), caracteriza as movimentações da direita no país e apresenta as táticas que os movimentos sociais estão adotando neste momento.


O MAS surgiu do interior da CSUTCB, dos seus fóruns. Gostaria de saber como você descreve a relação deste partido com o movimento campesino e sua a entidade nacional?

Há onze anos decidimos formar este instrumento, em conjunto com Confederação Sindical dos Colonizadores e a Federação Nacional de Mulheres Campesinas “Bartolina Sisa”. Fizemos isso porque havia muita discriminação, maltrato, roubo, nossas riquezas naturais estavam sendo rifadas. Precisávamos de um instrumento político dos movimentos sociais. A princípio ele se chamava Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP) e por três vezes tentamos obter a sua personalidade jurídica e não conseguimos por entraves burocráticos. Finalmente, um velhinho nos deu de presente a personalidade jurídica do partido MAS. Com isso começamos a avançar na parte legal. Lançamos o nosso irmão Evo Morales, líder cocalero, enquanto candidato. Conseguimos elegê-lo duas vezes deputado e agora finalmente presidente. Evo Morales é filho da CSUTCB, da Confederação de Colonizadores e das Bartolinas Federação Nacional de Mulheres Campesinas “Bartolina Sisa”, ele não pode deixar estas organizações. Seus projetos de leis e políticas gerais, como a nacionalização dos recursos naturais, são coordenados conosco. Sempre somos considerados nas decisões do governo. E é por isso que nós mobilizamos e marchamos para defender a mudança estrutural, econômica e política que ele está fazendo. É nosso governo e está no caminho certo, não está marginalizando as classes pobres, mas também não as classes grandes. Está fazendo projetos que favorecem a todos e não a alguns poucos.


O IPSP quando surgiu se submetia aos fóruns dos movimentos que o criaram. Agora como está esta relação, o MAS ainda se submete aos fóruns dos movimentos ou tem fóruns próprios?

A estrutura do MAS agora são os movimentos sociais, isso não mudou. Com o crescimento que tem um partido ao entrar no governo, a tendência é que haja uma separação automática, partido para cá e movimento para lá. Mas, se nós ficássemos somente no lado dos movimentos sociais, não teríamos a confiança do presidente nem ele teria a nossa. Isso não iria funcionar e por isso continuamos atuando de forma conjunta. Por exemplo, Evo participa dos nossos fóruns, dos nossos ampliados, se organiza conosco também.


Como caracteriza o processo político que começa a partir do governo Evo Morales?

Muito bem. Antes da nacionalização dos recursos naturais, recebíamos 350 milhões de dólares e agora estamos recebendo 2,1 bilhões. E para onde ia esse dinheiro antes? Que faziam os governos? Negociavam, se enchiam de dinheiro, iam morar no estrangeiro. No tema mineiro, o Estado antes recebia cinco milhões por ano e agora está chegando a 100 milhões de dólares por ano e continua aumentando. Então, se você imagina isso que está fazendo o presidente, nenhum presidente havia feito antes. O palácio era o palácio das negociatas, agora é o palácio de projetos para o povo boliviano. Por exemplo, esta nova lei da Renta Dignidad: 30% dos recursos do imposto direto sobre os hidrocarbonetos para os nossos avós que nunca se aposentam. Realmente, nós estamos muito contentes com o nosso presidente e vamos defender o seu governo custe o que custar.


Esse processo de mudança é um produto da mobilização dos movimentos sociais, quando acha que este processo iniciou?

Como disse, o nosso instrumento político acabou de fazer onze anos. E neste período, dentre as três organizações, inclusive dentro da nossa base, não eram todos que tinham acordo com o instrumento político. Custou muito conscientizar, informar, dizer porque queríamos este instrumento. Os companheiros diziam “mas isso é político”, porque a direita colocava na cabeça deles que o campesino, o indígena, não podia fazer política, só podia votar, nada mais. Agora já não, conseguimos reverter isso. Sabem que um campesino pode estar à frente do Estado, pode ser deputado, pode ser ministro. Antes não, tinha que ser de gravata sempre. E assim nos manobraram durante muitos anos, a oligarquia e o fascismo.


E quais mudanças trazem a nova Constituição Política do Estado, que foi aprovada este final de semana?

Muitas. Os deputados tinham imunidade parlamentar, agora é “imunidade zero”. Eles antes roubavam o Estado e tinham imunidade, não podiam ser presos, ninguém os processava, e eles iam embora felizes com o dinheiro. Outra mudança é o Estado Plurinacional, nesta Constituição temos 36 povos. A antiga somente reconhecia os povos indígenas, nada mais, mas agora eles fazem parte dela. No tema dos recursos naturais - madeira, biodiversidade, petróleo, minerais, etc. - o controle está nas mãos do povo. O Estado continua sendo o que maneja, mas quem controla localmente são os companheiros, os nossos irmãos.


Há muitos teóricos que dizem que este governo representa um processo de descolonização da Bolívia, de recuperação do poder por parte dos índios, dos originários. Você concorda com essa opinião?

Eu creio que isso é verdade, mas também não queremos dizer que somente nós vivemos no país. Acreditamos que estamos avançando nesta linha de descolonização, mas também tomando em conta todos. Não podemos discriminar os profissionais, as pessoas que vivem nas cidades, porque os mesmos irmãos do campo também estão na cidade.


Bom, se estamos falando de CSUTCB, estamos falando também de política agrária. Qual é a sua avaliação acerca da política agrária do governo Evo Morales?

Hoje faz um mês que começou a ser aplicada a nova Lei de Recondução Comunitária, a Lei 3545. O significa ela? Que todas as terras que não cumprem com a sua função social econômica serão recuperadas pelo Estado, para posterior distribuição aos que não tem terras. Então, esta é a nossa luta agora. Tenho certeza de que em um, dois, no máximo três anos, teremos pelo menos 10 milhões de hectares para distribuir a nossos irmãos em todo o país. Esta é a política que foi lançada pelo presidente com esta nova lei, mas que também foi conseguida pelos movimentos sociais através de uma marcha, que fizemos no ano passado.


E esta proposta de referendo acerca da limitação da extensão das propriedades individuais, qual é a sua opinião?

Ela me parece muito importante. Porque um empresário tem meio milhão de hectares e um campesino tem dois hectares. O que estamos reivindicando agora é que cinco mil hectares que fique com ele e o resto que se vá para o Estado. E isso vai para referendo junto com o novo texto constitucional. O povo decide se vota pelo latifúndio ou se vota pela limitação dos cinco mil hectares. O povo soberano decide com o voto.


E se for aprovada a proposta dos 5 mil serão muitas as modificações nas terras bolivianas?

Sim, muita. Vai sobrar muita terra para os que não a tem.


E como ficará a relação com os latifundiários de Santa Cruz?

Não importa. Se agora já estão se rebelando, brigando, maltratando. O que vamos fazer? Cumprir com o eu for decidido, e que decida o povo com o voto popular.


Vai haver indenização para as terras excedentes depois que se aprova a limitação?

Não.


A que se deve a organização de maneira tão incisiva da direita no país? Com os departamentos da meia lua, seus governadores, comitês cívicos, etc.?

Seu desespero. Seus interesses agrários, econômicos e políticos. Eles viveram em privilégio durante muitos anos, como ministros, como governos, com os recursos que roubavam das instituições. Agora nós vamos defender a democracia, e que eles sigam brigando por seus antigos privilégios. Isso não nos importa, não interessa. Mas não vamos deixar que continuem roubando, que continuem vendendo as terras. Que fiquem com o que lhes corresponde. E a estes senhores que têm dinheiro, nós respeitamos. Mas que eles também respeitem as nossas leis e as nossas normas.


O vice-presidente Álvaro García Linera falou várias de construir um pacto social que incluísse estes setores. Com o atual panorama de Bolívia, crê que isso seja possível?

A nova Constituição e as leis que estão sendo apresentadas não excluem ninguém. Eles são os que não querem se incorporar, repelem tudo. O único que eles têm que fazer é aceitar o que está sendo feito. Mas tanto faz, não vamos excluir ninguém e também não somos racistas. Não vamos nos igualar a eles e o presidente também não. Porque se fosse assim, ele já teria aplicado um estado de sítio, utilizado a força. Mas são eles os que estão agredindo o povo boliviano, violando a Constituição, os direitos humanos, a democracia.


Há um histórico muito grande de intervenções imperialistas na América Latina. Você acredita que há possibilidade de golpe de Estado?

Não. O presidente tem o apoio de todos os povos do mundo. Tem apoio econômico de muitos países também, como a Venezuela, Cuba, Espanha, etc. No tema econômico, o país está muito bem, nós temos uma credibilidade internacional.


No dia 15 de dezembro a nova Constituição será apresentada. Com todo o momento político que há agora na Bolívia, o que acredita que vai acontecer? O que acredita que os setores da direita vão fazer?

Não sei, podem fazer o que quiserem. Nós vamos, em uma festa cívica, entregar ao presidente e ao Congresso o texto constitucional. E, além disso, estamos convocando todos os povos indígenas a virem com a sua vestimenta, para que a sua cultura tradicional esteja presente no sábado também. Durante todo o dia vamos estar nesta vigília e os outros podem fazer o que quiserem, mas nós continuaremos com a mudança social em nosso país, junto às nossas bases, junto ao povo boliviano.


Quais são as recomendações da CSUTCB para os movimentos sociais que estão localizados no centro dos conflitos, em Sucre, em Santa Cruz?

Eles, os movimentos autonômicos, estão falando de estatuto autonômico, mas não consultaram o povo nem as organizações. A instrução que estamos dando às nossas bases é trabalhar nos níveis das províncias, das regiões e dos povos indígenas os seus próprios estatutos. Isso no campo, nos quatro departamentos da meia lua. E, além disso, estamos trabalhando em um projeto de lei para que os recursos passem direto do governo às províncias e que não passe pelo governo departamental.


Como vão funcionar e ser aprovados estes estatutos locais?

Simples, porque as autonomias indígena e regional já estão previstas na nova Constituição. Nós só vamos aplicá-las. Vamos desenvolver os nossos estatutos autonômicos para contrapor as forças oligárquicas. Porque são os da cidade os que estão apóiam estas forças, no campo é tranqüilo. Então, se eles fazem os seus estatutos autonômicos, baseados na autonomia departamental, e não nos consultam, por que não vamos fazer e aplicar os nossos, baseados nas autonomias indígena e regional, também?


Quais são as principais tarefas dos movimentos sociais neste momento?

Nossa tarefa central agora é difundir a nova Constituição, socializá-la pela televisão, pelo rádio, nas comunidades, nas províncias, nos bairros. Temos que dizer o seu conteúdo, a quem favorece. O povo tem que saber isso.


Qual o projeto de sociedade boliviana tem a CSUTCB? É um projeto socialista, popular, como o descreveria?

Somos democráticos. Respeitamos a democracia, respeitamo-nos uns aos outros. Mas nós enquanto movimento, politicamente falando, somos socialistas. Lutamos pela igualdade, sem discriminação. Isso é socialismo.


E lutam pelo fim do capitalismo?

Contra o capitalismo sim, contra o sistema neoliberal, norte-americano. Quem são estes gringos que querem nos subjugar? Nós queremos liberdade real, não queremos subjugação, queremos ser um país livre.

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